Olhos d’água, Duzu-Querença, Luamanda, Lumbiá, Di Lixão, são alguns dos títulos dos 15 contos que compõem o livro Olhos d'água, de Conceição Evaristo. Neles e nos tantos outros, a autora aborda questões que perpassam a vivência de personagens negros marginalizados e violentados pela sociedade.
“Havia anos que eu estava fora de minha cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor condição de vida para mim e para minha família: ela e minhas irmãs tinham ficado para trás. Mas eu nunca esquecera a minha mãe.” (trecho de Olhos d’água).
Em sua grande maioria as personagens dos contos são mulheres; outra característica encontrada com regularidade é muitas delas serem mães. Entretanto, na obra aparecem protagonistas homens, filhas, avós, que retratam em suas vidas temas sociais, sexuais, emocionais, todos eles atravessados por suas narrativas complexas e bastante densas, marcadas por uma condição racial.
“Davenga mordeu o lábio, contendo o riso. Olhou o político bem no fundo dos olhos, mandou então que ele tirasse a roupa e foi recolhendo tudo.
— Não, doutor, a cueca não! Sua cueca não! Sei lá se o senhor tem alguma doença ou se tá com o cu sujo!”.
(trecho do conto Ana Davenga).
Histórias de realidades brasileiras, em grande parte de mulheres negras, em quase todos os títulos temos o nome das personagens principais dos contos. Apesar de não serem histórias superficiais e virem bastante carregadas de violências e absurdos vividos cotidianamente por esses grupos, Evaristo também traz em alguns momentos humor, e, para além disso, muito afeto.
“Um dia, aos treze anos, a cama do gozo foi arrumada em pleno terreno baldio. A lua espiava no céu denunciando com a sua luz um corpo confuso de uma quase menina, de uma quase mulher. Corpo-coração espetado por um falo, também estreante. Um menino que se fazia homem ali, a inaugurar em Luamanda o primeiro jorro, fora de suas próprias masturbantes mãos. E ambos se lambuzavam festivamente um no corpo do outro. Luamanda chorando de prazer. O gozo-dor entre as suas pernas lacrimevaginava no falo intumescido do macho menino, em sua vez primeira no corpo de uma mulher. O amor é terremoto?” (trecho do conto Luamanda).
A riqueza da obra está justamente na maneira em que a autora se aprofunda na pluralidade de temas e sentimentos que constituem a condição humana. A sexualidade também é abordada e não só de maneira heteronormativa, um ponto bastante sensível e que muitas vezes é apagado em meio às outras problemáticas relacionadas a sujeitos marginalizados.
A prosa de Conceição Evaristo é guiada por uma linguagem poética, marca da autora, assim como os neologismos, que fazem parte de seu estilo. A esse modo de narrar dos personagens e de contar suas histórias e visões de mundo, a autora dá o nome de “escrevivências”, que marca a realidade, a vivência daquelas pessoas contada a partir da escrita.