Racionais MC’s: álbum é leitura obrigatória em vestibular; saiba tudo sobre a obra
“Sobrevivendo no Inferno” é o principal disco do grupo e agora é considerado obrigatório para vestibular da Unicamp
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras. Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros. A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo. Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente – Capítulo 4, Versículo 3 – Racionais MC’s.
Lançado em dezembro de 1997, “Sobrevivendo no Inferno” foi um marco na história do rap brasileiro e tornou-se um dos álbuns mais importantes dos anos 90. Agora, em 2018, essa obra alcança um novo patamar ao ser escolhida como leitura obrigatória de um dos vestibulares mais importantes e concorridos do Brasil, a Universidade de Campinas (Unicamp).
Na última quarta-feira (23), a Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp (Comvest), responsável pelo processo seletivo da instituição, divulgou a lista de obras de leitura obrigatória para o vestibular de 2020 e, para a surpresa de muitos, a relação incluiu na categoria “poesia” o quarto álbum do Racionais MC’s, ao lado de outras indicações como Ana Cristina César e clássicos sonetos do escritor português, Luís de Camões.
Em declaração ao UOL, o DJ KL Jay, membro do grupo, disse que “‘Sobrevivendo no Inferno’ é um ótimo livro de história”, comemorando o reconhecimento. Já em entrevista ao jornal O Globo, José Alves Freitas Neto, coordenador executivo do vestibular da Unicamp, explicou o motivo da escolha: “Nos chamou a atenção a questão da valorização da cultura da periferia proposta pelo disco. É uma obra que traz o olhar ácido e crítico dos Racionais e continua relevante. E ela mescla várias referências, o que é uma característica da literatura, trazer referências de outros discursos”.
Quem são os Racionais MC’s?
Para entender um pouco da importância desse álbum, é preciso conhecer qual era o contexto do Brasil nos anos 90.
Com o crescimento do neoliberalismo (uma teoria econômica que defende o estado mínimo e a livre concorrência no mercado, ou seja, o estado não deve interferir na economia do país e também não pode regularizar mercado) no mundo e, consequentemente, no Brasil, a concentração de renda ficou ainda maior. Quem antes tinha dinheiro, ganhou ainda mais e quem não tinha, ficou ainda mais pobre, acentuando a desigualdade social no País.
Como consequência dessa polarização, os números da violência urbana e da população carcerária disparou. Em texto feito para a revista Movimento, Wallace Salgado resgatou os dados sobre esse “boom”: “Segundo a pesquisa ‘Crime e violência na sociedade brasileira contemporânea. Jornal de Psicologia’ do pesquisador Sérgio Adorno: ‘No município do Rio de Janeiro, cresceram os homicídios dolosos, entre 1985 (33,35 registros/cem mil habitantes) e 1989 (59,16 registros/cem mil habitantes). No município de São Paulo, os homicídios evoluíram de 48,69 registros/cem mil habitantes, em 1991, para 55,77 registros/cem mil habitantes, em 1996, na Região Metropolitana”.
Wallace ainda reforça o quanto esse aumento na criminalidade refletiu em violência policial e discriminação em na população preta e periférica. “Todo Estado mínimo precisa de um Estado máximo de repressão, aqui essa repressão se dava dentro de uma estrutura racista que atingia o povo preto, pobre e periférico”, afirma no mesmo texto.
Com tudo isso, a partir de um selo independente, a Cosa Nostra, o Racionais MC’s lança “Sobrevivendo no Inferno” como uma forma de denunciar os maus tratos sofridos nas comunidades periféricas, o racismo e também para discutir a vida carcerária (em especial, Diário de um Detento relembra e aborda o massacre do Carandiru, em que 111 detentos foram assassinados e mais de 130 foram feridos durante uma tentativa de contenção de uma rebelião). O disco vendeu mais de um 1,5 milhões de cópias.
“Até então, foi o disco que mais e melhor representou a experiência social, racial e emocional do jovem negro periférico. A profundidade e reflexão sobre a subjetividade, angústias, anseios, medos e desejos de um jovem negro, que ressoava com milhões de outros jovens negros no Brasil todo, nunca havia sido abordada de maneira tão poética e verossimilhante”, reforça Victor em texto para a Ponte.
Em entrevista ao G1, em 2007, KL Jay disse que com esse álbum que o Racionais conquistou o resto do Brasil, aqueles que estão fora das periferias, e conseguiu ser ouvidos em todos os cantos: “a gente já era conhecido no Brasil inteiro nas periferias, nos guetos. Porque a música vai igual ao vento, ela vai entrando. Mas esse disco projetou mais, porque a MTV, o Brasil inteiro viu, outro público também viu. Aí o barato cresceu. Projetou a gente mesmo”, conta.
O sucesso do álbum ajudou o rap a tornar-se um gênero musical de denúncia e articulação política da população negra e periférica do País, assim, sendo um ponto de referência para aquela geração de rappers brasileiros e também para os outros que surgiram nesses 20 anos do projeto. “Assumimos essa postura de denúncia, o que foi necessário na época, pois não se falava sobre isso. Havia necessidade de uma voz. Soltaram essa bandeira na nossa mão e seguramos”, lembra Edi Rock em entrevista ao Nexo.
Presente ao Papa
Em viagem ao Vaticano, na Itália, em 2015, a prefeitura de São Paulo enviou de presente ao Papa Francisco uma cópia do disco autografado, que foi levado pelo então prefeito da cidade, Fernando Haddad.
Quem escolheu o presente foi um grupo de jovens da periferia paulista que deu a ideia ao coordenador de Políticas para Juventude, Cláudio Aparecido da Silva.
Outras obras do Vestibular Unicamp 2020
Além do álbum do Racionais MC’s, outras duas obras foram incluídas na lista de leituras obrigatórias, são elas: “A Falência”, de Júlia Lopes de Almeida, e “A Cabra Vadia”, de Nelson Rodrigues.
Veja a lista completa das obras escolhidas para a Unicamp 2020:
Apesar de não ser novidade, o livro “Quarto do Despejo – Diário de uma Favelada”, de Carolina Maria de Jesus, também é outro livro de destaque da lista e que reflete sobre a realidade da periferia brasileira, em que a autora relata a vivência na comunidade do Canindé, na zona norte de São Paulo (SP). Atualmente, Carolina é considerada uma das mais importantes escritoras negras do Brasil.
Agora que você sabe tudo sobre Racionais MC’s e a nova obra obrigatória da Unicamp, só não vale ficar moscando e não estudar para o vestibular ou não conseguir uma bolsa de estudos, ok?