Uso do nome social cresce no Enem, mas ainda faltam políticas de inclusão de pessoas trans no Ensino Superior
A carência de políticas públicas que respeitem a identidade de gênero, uso do nome social e acesso seguro ao banheiro reflete no número ínfimo de estudantes trans no Ensino Superior brasileiro
Uma das importantes conquistas da luta por direitos da comunidade LGBTI+ foi a adoção do nome social pelo SUS (Sistema Único de Saúde) em 2009. O nome social é a designação pela qual a pessoa transexual ou travesti se identifica e é socialmente reconhecida, independentemente do que consta no registro civil, evitando exposição e constrangimento desnecessários.
Nos anos seguintes, a medida se ampliou para outras instituições. Na educação, a Universidade Federal do Amapá (Unifap) foi a primeira a adotar o uso do nome social entre estudantes e servidores. Na educação básica, o Ministério da Educação (MEC) autorizou o nome social nos registros escolares em 2018.
Desde 2018, por uma decisão do Supremo Tribunal Federal, a retificação do registro civil para plena cidadania de transexuais e travestis pode ser feita no cartório de registro civil, sem a necessidade de realização de procedimentos cirúrgicos nem autorização judicial.
Aumento do uso do nome social no Enem
A política do uso do nome social foi adotada no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2014. Desde então, as solicitações para a utilização do nome social cresceram 315%, de acordo com um levantamento do Quero Bolsa, com base nos microdados do Enem.
Em 2019, o número de pessoas que solicitaram o uso do nome social no Enem aumentou 56,9%. Esse é o segundo número mais alto desde a implementação da política, perdendo apenas para 2016. O percentual volta a crescer após dois anos seguidos de queda.
Contando as 1659 solicitações feitas desde 2015 (quando a informação foi liberada nos microdados do Enem), São Paulo é o estado com maior número de solicitações de utilização de nome social, com 499, correspondendo a 30% do total.
Poder realizar o vestibular com o nome social foi essencial para a estudante Sophia Martins (18), que prestou o Enem 2019 e hoje cursa Tecnologia da Informação: “Se não tivesse a opção de incluir o nome social, eu não faria o Enem porque eu ficaria desconfortável”.
A exclusão começa no Ensino Básico
Para a Sayonara Nogueira, vice-presidente do Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE) e membra do Comitê Trans da Rede Ibero-Americana de Educação LGBTI, o movimento trans vem conquistando alguns direitos mesmo que a passos lentos, mas na esfera da educação ainda há muito o que ser alcançado.
“Existem poucas ações em relação aos direitos das pessoas trans na educação. Os maiores avanços foram as portarias de nome social nas universidades, onde estas têm autonomia para publicar através de seus conselhos”, aponta.
A dificuldade na educação para as pessoas transexuais e travestis começa ainda no Ensino Básico, quando parte desses estudantes deixam a escola antes de completar o Ensino Médio. De acordo com a pesquisa “As Fronteiras da Educação: A realidade dxs estudantes trans no Brasil”, feita pelo IBTE em 2019, a transfobia é o principal motivo de abandono dos estudos, seguido por depressão e situação financeira.
Dos 250 estudantes transexuais consultados na pesquisa, 50% disseram que já abandonaram os estudos em algum momento da vida. Entre as dificuldades de permanecer no ambiente escolar, estão: preconceito, assédio moral e agressão verbal. Os estudantes também relataram que encontraram negação ao nome social e ao uso dos banheiros.
A escola que deveria ser um espaço acolhedor de combate ao preconceito, à discriminação e à violência acaba representando o contrário para crianças e adolescentes trans.
“Na educação básica não acontece um processo de evasão, como muitos tentam pintar, ocorre um processo de expulsão e exclusão mesmo. A escola não é acolhedora; ela cria estratégias de violência, inclusive simbólica, chegando à violência física por vezes”, enfatiza Ivan Amaro, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Diferenças, Educação, Gênero e Sexualidade (NuDES).
A estudante Sophia também sofreu com a transfobia na escola: “No Ensino Médio, quando eu decidi ser tratada como Sophia, no começo da minha transição, foi muito difícil. Eu fui perseguida por professores. Lembro o quanto me sentia desrespeitada e constrangida por certas coisas. Imagina uma pessoa trans, que às vezes não sabe que pode usar o nome social, ir para faculdade e ser constrangida? Acaba ali”.
A transfobia leva à marginalização
Concluir os estudos e ingressar no Ensino Superior é uma questão de sobrevivência para as pessoas trans. Isso porque, ao serem expulsas do ambiente escolar, transexuais e travestis são marginalizadas, ficam sem direitos e sem oportunidades de trabalho, e propensas à prostituição, à dependência de drogas e ao suicídio.
O Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis no mundo, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Aqui, a expectativa de vida de uma pessoa transexual é de apenas 35 anos, menos da metade do que a expectativa de vida dos brasileiros, que é 76,3 anos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“O problema não é entrar na faculdade, são todas as dificuldade que enfrentamos a partir do momento que assumimos nossa identidade e queremos ser respeitadas. Se fosse uma escolha, nenhuma de nós escolheria passar por tanto julgamento e repressão. A vida trans é um fardo muito grande. Somos muito marginalizadas pela prostituição e pela objetificação dos nossos corpos. A partir do momento que decidirmos e entrar na universidade é muito assustador para sociedade. Só que as pessoas precisam começar a aceitar a ideia de que travesti pode sim ter um profissão, cursar faculdade e fazer muitas outras coisas”, declara Sophia.
Os dados refletem uma questão cultural do Brasil, do sexismo, LBGTIfobia e conservadorismo enraizados no país. Para Anderson Ferrari, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e Diversidade (Gesed), também é papel da educação lutar para mudar esse cenário, por meio o avanço da discussão sobre gênero e sexualidade nas escolas, por exemplo.
“Se o Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo, ele é um dos que mais matam mulheres também. O feminicídio está diretamente ligado à LGBTIfobia. Temos o compromisso educativo de construir homens diferentes, homens que não entendam a mulher como posse, que não entendam a travesti como um objeto, que não entendam a homossexualidade como ameaça; homens que construam suas masculinidades sem exclusão das outras pessoas”, completa.
Além de ingressar, é preciso permanecer
Apesar da utilização do nome social no Enem e outros vestibulares, o número de estudantes trans no Ensino Superior ainda é ínfimo. Segundo um levantamento da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino Superior (Andifes) de 2018, apenas apenas 0,2% do total de estudantes em universidades federais se identificam como transgêneros e outros 0,6%, como não-binários.
Para mudar essas estatísticas, algumas poucas universidades públicas adotaram cotas para estudantes trans em cursos de graduação e pós-graduação. Para o professor Anderson é fundamental que se amplie essa política de cotas para que se garanta uma disputa mais democrática no acesso ao Ensino Superior, tendo em vista que esse público é socialmente excluído que encontra dificuldades em sua trajetória escolar.
Entretanto, não basta ingressar na universidade, é preciso permanecer nela. “Assim como a escola, a universidade também tem processos muito sutis e eficientes de expulsar as pessoas trans dos seus cursos. É uma violência muito grande, por exemplo, quando um professor se recusa a utilizar o nome social do aluno”, afirma Anderson.
Para garantir a permanência estudantil de transexuais e travestis, algumas poucas universidades têm diretorias de diversidade para favorecer o acolhimento e inclusão da comunidade LGBTI+; criar ações afirmativas e de assistência estudantil, como cotas e bolsas; acompanhar casos de LBGTIfobia; e promover discussões sobre sexualidade, diversidade de gênero e direitos de pessoas LGBTI+. A articulação de alunos em coletivos LGBTI+ também exerce um papel importante na resistência desses estudantes no ambiente universitário.
O professor Anderson enfatiza que só a presença de pessoas trans na universidade já é capaz de trazer questões nunca antes pensadas: “As discussões de transexualidade na educação iniciaram a partir do momento que as pessoas trans resistiram ao processos de controle da escola, concluíram os estudos e chegaram ao Ensino Superior para tencionar os saberes da universidade. É importante as pessoas trans entrarem nos cursos de pós-graduação para produzirem conhecimento a partir das suas perspectivas e de seu local de fala, trazendo outros autores e outras temáticas”.
Ainda faltam políticas de inclusão
O Brasil ainda carece de políticas públicas que garantam o acesso e a permanência das pessoas trans no Ensino Básico e Superior que respeitem a identidade de gênero, uso do nome social e acesso seguro ao banheiro.
Um dos caminhos apontados pelos especialistas para manter os estudantes trans no ambiente escolar é a reformulação do currículo de cursos de formação de professores, para que se inclua temáticas como gênero e diversidade sexual.
“A universidade junto às secretarias de educação necessitam oferecer formação continuada, sensibilizando seus agentes públicos em relação à população trans para assim desenvolver ações efetivas de acolhimento, inclusão e permanência de maneira digna”, completa Sayonara.
Além das ações no ensino básico e superior, Sayonara indica o papel da Educação de Jovens e Adultos (EJA) também é de suma importância, já que muitos transexuais e travestis não concluíram o Ensino Fundamental.
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