Minorias nas faculdades: por que o acesso ao Ensino Superior ainda é restrito no Brasil?
PNE prevê que 50% dos jovens brasileiros estejam matriculados no Ensino Superior em 2024. Três anos após a aprovação do Plano, analisamos a situação de inclusão de populações que, atualmente, são minorias nessas instituições
PNE prevê que 50% dos jovens brasileiros estejam matriculados no Ensino Superior em 2024. Três anos após a aprovação do Plano, analisamos a situação de inclusão de populações que, atualmente, são minorias nessas instituições
Aprovado pelo Congresso Nacional em junho de 2014, o Plano Nacional de Ensino (PNE) determina 20 metas, com diretrizes e estratégias, que devem ser colocadas em prática até 2024 para ampliar e melhorar o acesso da Educação Infantil ao Superior no Brasil.
Entre as metas estabelecidas, ficou determinado que o sistema do Ensino Superior deve aumentar a taxa de matrículas de jovens de 18 a 24 anos nessa categoria de 34,6% para 50%. Para que isso aconteça, o PNE prevê que as instituições aumentem o número de vagas e desenvolvam mecanismos para incluir populações que, atualmente, são minorias nessas instituições, visto que a educação pode ajudar a diminuir as taxas de desigualdade social.
“Se as pessoas têm acesso à educação, já é um bom indicativo para combater as desigualdades e, mais ainda, se permitir que os grupos excluídos tenham acesso a esse componente específico”, explica Maximiliano Martin Vicente, doutor em História Social e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Passados três anos da aprovação do PNE, a Revista Quero consultou os microdados do último Censo do Ensino Superior no Brasil, divulgado em 2016 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira Legislação e Documentos (Inep), a fim de analisar como está a situação atual do acesso às minorias ao Ensino Superior. Esse levantamento é realizado anualmente e é considerado o maior instrumento de pesquisa do País sobre instituições do segmento.
Muito além da questão da cor da pele
Nos dados elaborados pelo Quero Bolsa para a Revista Quero, foi possível perceber que em todas as regiões brasileiras existe um maior número de pessoas brancas e/ou pardas no Ensino Superior, entretanto, é grande a discrepância entre a população preta e branca nas regiões Nordeste e Sudeste, respectivamente.
Segundo Juarez Tadeu de Paula Xavier, jornalista, doutor em Ciências da Comunicação e coordenador do Núcleo Negro para Pesquisa e Extensão (Nupe), essa situação se deve ao fator histórico. “Desde o período do início da colonização, houve uma concentração grande da população negra na condição de escravidão no Nordeste e no Norte, onde estavam as grandes unidades de produção de açúcar. Já no Sul, a colonização se deu de forma muito intensa em especial depois do século XIV, com o ingresso da população italiana e da população alemã no período forte de migração, que foi de 1871 a 1930”, explica.
Apesar de as discussões de cor e raça serem polarizadas entre brancos e pretos, ainda há a questão indígena. De acordo com os microdados do censo, os indígenas são os que possuem menos acesso ao Ensino Superior em todas as regiões.
Luiz Henrique Eloy Amado é um membro da tribo Terena, localizada em sua maioria na região Centro-Oeste, e advogado militante da causa indígena. Ele formou-se em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) em 2011 e atualmente é doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Luiz Henrique compõe a minoria da população indígena que conseguiu ingressar em um curso superior e, o mais importante, conseguiu permanecer nele.
Acessibilidade para quem?
Ana Raquel Périco Mangili possui distonia generalizada (distúrbio de movimento), disfonia (alterações na voz) e deficiência auditiva, e no começo de 2017 formou-se com honras no curso de Jornalismo da Unesp, localizada no interior do Estado de São Paulo.
A jornalista conta que sua deficiência motora não atrapalhou sua formação, porém a deficiência auditiva fez com que ela fosse impactada em alguns momentos: “Eu tenho que enxergar a boca dos professores a aula inteira para conseguir ouvir e compreender as explicações. Isso exige uma concentração e um esforço mental tremendos. Geralmente, saía muito cansada e com dor de cabeça no final de cada aula.”
Uma pesquisa divulgada em 2015 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com Ministério da Saúde revelou que 6,2% da população brasileira possui algum tipo de deficiência, equivalente a 12,8 milhões de pessoas. Já com os microdados divulgados pelo Inep, foi possível descobrir que das 11,1 milhões de pessoas que estão matriculadas em alguma instituição de ensino, apenas 51.685 (0,5% do valor total) possuem algum tipo de deficiência.
Apesar de o ranking mostrar as top 10 faculdades com maior número de pessoas com algum tipo de deficiência em seu quadro de alunos, é possível ver que apenas seis possuem mais de 10% de alunos com deficiência. Entretanto, é positivo o fato de que algumas instituições possuem políticas próprias para propiciar a acessibilidade e, consequentemente, facilitar o acesso e a permanência dessas pessoas no Ensino Superior.
Por exemplo, a Universidade Federal do Ceará (UFC), que está no quinto lugar do ranking, criou em 2010 a Secretaria de Acessibilidade, um setor exclusivo dentro da universidade para ações de inclusão e integração de pessoas com os seguintes tipo de deficiência:
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Cegueira;
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Baixa visão;
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Perda auditiva;
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Transtorno do Espectro Autista;
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Pessoas com superdotação, aquelas que possuem significativos potenciais de várias áreas.
“Para a pessoa com deficiência, a acessibilidade é de fundamental importância para que se possam contornar as barreiras que são apresentadas na interação entre o meio social e as particularidades do indivíduo”, diz Ana Raquel.
Perder a liberdade não significa perder o direito à educação
“A pessoa quando é presa perde legalmente dois tipos de direito: os direitos políticos, e o direito de ir e vir, tirando esses ela mantém todos os demais como qualquer cidadão”, explica Francisco de Barros Crozera, advogado da Pastoral da Carcerária, uma ação da Igreja Católica Romana que busca zelar pelos direitos humanos e pela dignidade humana do sistema prisional brasileiro.
Segundo o artigo 6º da Constituição Federal de 1988, é direito social de todo cidadão brasileiro o acesso à educação. Sendo assim, aqueles que estão cumprindo penas, seja em regime fechado ou semiaberto, também devem ter a oportunidade de voltar aos estudos, incluindo os de nível superior. Entretanto, essa não é a realidade brasileira.
O último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), realizado pelo Ministério da Justiça (MJ), mostra que existem mais de 620 mil presos no Brasil. Desse número, apenas 279 estão cursando o Ensino Superior, seja a distância ou presencial.
Francisco também aponta que o perfil das pessoas que estão em cárcere é de 80% não-concluintes do Ensino Médio e 40% que não conseguiram terminar o Ensino Fundamental, por isso a demanda de cursos dessa necessidade é maior do que os de Ensino Superior.
Apesar de os números serem raros, existem exceções que conseguem ter acesso ao direito à educação. Venílton Leonardo Vinci foi o primeiro preso do Estado de São Paulo a concluir uma graduação de nível superior. Em entrevista à Revista Quero, Venílton Leonardo, que formou-se em Pedagogia e irá começar o curso de pós-graduação em Psicopedagogia no próximo semestre, disse que a educação salvou sua vida: “Não quero ser o único a ser salvo. Sei que sou um exemplo, sou um exemplo vivo de que quem consegue acreditar em si mesmo consegue vencer, consegue melhorar. Quero levar isso para outras pessoas, é a missão que escolhi.”
Além do aprendizado, a Lei de Execução Penal também garante que a cada 12 horas estudadas, um dia da pena seja descontado.
“A educação é um valor humano fundamental, a que todas as pessoas devem ter acesso. Certamente ela poderá ser fundamental para uma mudança de vida de algumas pessoas privadas de liberdade, pois ela é potencialmente um instrumento redutor de desigualdades, mas deve ser ofertada por princípio, independentemente dos resultados que se obtenham”, afirma Crozera.
Travestis e transexuais também têm direitos e precisam de oportunidades
No meio da infinidade de microdados coletados pelo Inep, não há nenhum tipo de registro sobre o número de pessoas que solicitaram o uso do nome social em faculdades e universidades do Brasil.
Segundo a coordenadoria de imprensa do Ministério da Educação (MEC), a Constituição de 1988 prevê que as instituições sejam autônomas e que não são obrigadas a passar esse tipo de informação para o ministério.
Entretanto, fica a questão: como o MEC fiscaliza o cumprimento da Lei de Nome Social se nenhuma instituição de ensino precisa informar as solicitações requeridas a eles?
A Lei de Nome Social tem como objetivo permitir que travestis e transexuais – aqueles cujo gênero não se identifica com o seu sexo biológico (por exemplo, um homem trans é uma pessoa que nasceu com os órgãos reprodutores femininos, mas não se identifica como mulher) – sejam chamados pelo nome que condiz com a sua imagem.
Beatriz Pagliarini Bagagli é um exemplo de mulher transexual que precisou lutar para que a Universidade de Campinas (Unicamp) aceitasse o uso do seu nome social. Atualmente, Beatriz é mestranda em linguística pela mesma instituição, mas enquanto cursava Letras, em 2013, pediu para que a direção da universidade alterasse os seus dados no sistema e, apesar de ser informada que o processo seria rápido, demorou mais de um ano para que o seu pedido fosse implementado, o que só aconteceu após uma reclamação direta com a ouvidoria da Unicamp.
Ainda que existam poucos dados sobre essa população, no ano de 2016 o MEC divulgou que o número de pedidos para mudança de nome social no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), uma das principais formas de acesso ao Ensino Superior no País, praticamente dobrou em relação ao ano anterior.
“A universidade é um espaço que representa ascensão social e diversas oportunidades importantes na vida de qualquer pessoa. É importante que existam travestis e transexuais cursando o nível superior porque isso impacta no tipo de conhecimento que é produzido sobre nós – e agora, para nós, feito por nós, e não apenas sobre”, afirma Beatriz.
As barreiras entre nós
Além de enfrentar as dificuldades já citadas para conseguir ingressar no Ensino Superior, essas minorias também precisam lidar com o preconceito, seja ele institucional, racial ou de gênero.
Juarez frequentou a Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo nos anos 80 e foi o primeiro presidente negro do Diretório Acadêmico dos Estudantes (DCE), porém isso não impediu que ele sofresse algumas situações de racismo seja por parte da instituição ou por colegas de classe.
“Certa vez, tive um enfrentamento com um membro da burocracia da universidade. Nós ocupamos a sala da reitoria e ele acabou tendo um descontrole e me xingou com
ofensas racistas, mas imediatamente a reitoria interveio e a reitora da época o afastou das funções dele, por não considerar adequado que um servidor daquele naipe da universidade tivesse aquele comportamento”, relembra. Segundo Juarez, a instituição era muito politizada, o que diminuiu os episódios de racismo evidente.
A questão racial e principalmente o fato de ter ingressado na faculdade por cotas sociais fez com que Luiz Henrique, que atualmente é advogado e militante pela causa indígena, passasse por várias situações de preconceito como, por exemplo, ter de ouvir que “entrou pela porta dos fundos da universidade”. Em especial, Luiz relembrou uma situação por que passou no final do curso, quando foi participar de uma visita com ativistas em defesa dos direitos humanos para prestar solidariedade a um acampamento indígena que tinha sido atacado. Quando uma de suas professoras soube que ele não tinha comparecido ao estágio obrigatório por esse motivo, foi reclamar ao coordenador da UCDB). “Essa professora se revoltou e foi à sala do coordenador do estágio e falou em alto bom som que eu teria que escolher: ou eu seria advogado ou eu ia viver defendendo os meus índios. Na cabeça dela não era possível conciliar as duas coisas: advogado e, ao mesmo tempo, militante da causa indígena.”
Segundo o professor Maximiliano, o preconceito é uma questão histórica que vem dos tempos coloniais e que pode ser denominada de patriarcalismo. “Por essa herança, a sociedade seria apenas para os homens brancos e com capacidade e poder econômico. Evidentemente, eles não querem abrir mão de seus privilégios de forma alguma e devemos lembrar que a educação foi uma dessas vantagens, por ser considerada um instrumento para perpetuar as desigualdades. Veja que isso se construiu e se manteve no passar do tempo, o que explica o desconforto ocasionado entre a sociedade patriarcal quando se anunciam medidas que apontam ao sentido contrário”, explica.
Por outro lado, Taya Carneiro, formada em Comunicação Organizacional pela Universidade de Brasília (UnB) e militante da causa trans, conta que, apesar de ter transacionado para a identidade feminina durante a faculdade, não sentiu preconceito por outras pessoas da sua faculdade, apenas alguns olhares curiosos durante o período de transição. “Alguns professores tiveram algum tipo de resistência em me chamar pelo nome social, mas depois de um tempo todo mundo se adaptou. Acredito que aconteceu um debate interno na faculdade e não precisou que eu fosse lá para conversar com eles”, explica.
Entretanto, Taya acredita que o fato de ela não ter sofrido tanto preconceito foi devido ao seu sentimento e confiança no seu empoderamento, dominando o tema e seus argumentos.
Permanecer na faculdade, um sinal de luta
Apesar da meta da PNE visar ao aumento do ingresso de jovens e adultos no Ensino Superior, também é preciso trabalhar no desenvolvimento de políticas que permitam que essas minorias permaneçam e consigam concluir o seu curso de graduação.
Segundo Luiz, muitos indígenas precisam não apenas de ajuda financeira, mas também de acompanhamento, visto que, por exemplo, muitos têm dificuldade com o português (já que essa não é a língua materna da comunidade em que muito deles cresceram), com as metodologias científicas, com questões de manuseio de computadores e de muitas outras ferramentas de comunicação com as quais eles não tinham contato até saírem de sua aldeia para estudar.
Apesar de Ana Raquel não ter nenhuma dificuldade com as questões citadas por Luiz, foi fundamental para a sua graduação todo o apoio e a acessibilidade oferecidos durante os quatro anos de curso. “Minhas solicitações foram todas atendidas: um notebook para me dar independência na escrita acadêmica, disponibilidade de mesa e cadeira adaptada, legendagem de todo conteúdo audiovisual passado durante as aulas e uma monitora que me acompanhasse nas aulas e me ajudasse em atividades como carregar o material de estudos”, conta.
Para Taya, é preciso que existam pessoas transexuais e travestis no meio acadêmico e, o mais importante, que elas consigam permanecer nesses locais sem que a transfobia as atinja. Segundo a organização não governamental Transgender Europe (TGEU), o Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis do mundo, com 604 mortes em seis anos (2008-2014). A maior causa desses assassinatos é a transfobia (caracterizada por atitudes e sentimentos negativos ou de ódio em relação a transexuais e travestis), que é a mesma que dificulta o acesso e a permanência à graduação por essas pessoas. “A sociedade precisa da diferença para inovar. Se todo mundo pensar igual, a sociedade não vai conseguir apresentar coisas novas, não vai conseguir desenvolver tecnologias, não haverá uma diversidade de pensamentos. A gente precisa da diversidade para conseguir evoluir”, explica.
Ainda para garantir a permanência dessas minorias e a pluralidade no meio acadêmico ou social, é preciso que exista respeito pelas diversidades e que essa iniciativa parta, principalmente, das instituições de ensino brasileiras. “Talvez uma das formas mais interessantes para que isso aconteça seja por meio de programas institucionais de diversidade e de educação para diversidade, algo comum nas universidades norte-americanas e que tem a função de criar políticas próprias aos grupos que são chamados grupos minoritários. Engraçado que aqui no Brasil esses grupos não são minorias, mas precisam de políticas institucionais, tanto nas faculdades quanto nas universidades, para que eles possam fazer o debate político aberto, de forma franca, direta e objetiva nessas instituições”, completa Juarez.
Reportagem: Isabela Giordan
Produção: Adriana Nakamura, Natália Plascak Jorge e Isabela Giordan