Desafios do ensino remoto impactam na saúde mental dos professores
Profissionais da educação relatam ansiedade, sobrecarga, cansaço e estresse diante das dificuldades impostas pela pandemia
Ansiosos, sobrecarregados, cansados, estressados e frustrados, assim se sentem a maior parte dos professores diante da realidade das aulas remotas. É o que mostra a pesquisa “Sentimento e percepção dos professores brasileiros nos diferentes estágios do Coronavírus no Brasil”, do Instituto Península.
Na última etapa da pesquisa, em agosto, a maioria dos professores do Ensino Básico que responderam à pesquisa declara se sentir ansioso (64%). O sentimento de ansiedade predomina desde abril e maio, quando a porcentagem de ansiosos era de 67%. Entre a segunda e a terceira etapa da pesquisa, a quantidade de professores que se sentiam sobrecarregados subiu de 32% para 53%.
A abrupta transição para o ensino remoto
Os profissionais da educação foram uma das categorias mais afetadas pela atual pandemia de Covid-19. De uma hora para outra, escolas e universidades foram fechadas e os professores precisaram se adaptar ao ensino remoto.
A transição abrupta para o ensino remoto, num contexto de medo e preocupação geral devido à pandemia, trouxe uma série de novos desafios aos professores.
A começar pela falta de experiência. De acordo com a pesquisa do Instituto Península, antes da paralisação das aulas presenciais, 88% dos professores nunca tinha dado aula à distância de forma remota e a maioria deles (83,4%) se sentia nada ou pouco preparada para ensinar remotamente.
A professora da Educação Básica, Ana Carolina Vieira de Araújo, de Taubaté (SP) conta que, no início, sua maior dificuldade foi se organizar e entender qual seria a melhor forma de passar o conteúdo aos estudantes. “Eu nunca dei aula on-line, então, como ensinar física a adolescentes a distância?”, indaga.
Embora já tivesse proximidade com a tecnologia e os recursos digitais, para o professor universitário Josué Marcos de Oliveira Brazil, também de Taubaté (SP), a maior dificuldade foi aprender, em tempo recorde, a usar a nossa plataforma virtual de aprendizagem e conseguir extrair o melhor dos aplicativos de videoconferência.
O processo de adaptação e o novo formato de ensino aumentaram ainda mais o volume de trabalho dos educadores. Para a professora Ana Carolina, essa transição foi desafiadora e caótica, pois o trabalho triplicou: “Antes, para preparar uma aula, eu precisava preparar um roteiro de aulas e exercícios. Agora, para as aulas on-line, eu preciso preparar um roteiro da aula transcrito para os alunos e exercícios diferentes, para que eles consigam fazer sozinhos”.
Com mais de 30 anos de docência, a professora universitária Sophie Françoise Mauricette Derchain, de Campinas (SP), precisou reaprender a ensinar: “Inicialmente foi muito trabalhoso gravar as aulas, pois são necessários vários testes para ficarem boas. Acostumados a utilizar gestos e posturas de sala de aula, reaprendemos na tela, de forma autodidata”.
Outra dificuldade dos docentes é o baixo desempenho e a apatia dos alunos. “O maior desafio é tentar superar a falta de envolvimento, empatia e dinâmica que só o presencial possibilita. Eu fico inseguro com o nível de retenção e aprendizado dos alunos. Houve perda pedagógica, é inegável”, conta o professor Josué.
Em meio a tanto trabalho, existem ainda as demandas domésticas e familiares. A professora da Educação Básica Suzany Mangeth Gomes, de Fortaleza (CE), relata que, além do desafio de se adaptar muito rapidamente ao ensino remoto, sua maior dificuldade foi encontrar o equilíbrio entre a rotina doméstica, como mãe, esposa e administradora do lar, e a vida profissional dentro de casa.
Piora na saúde mental dos professores
Os quadros de ansiedade, estresse e Síndrome de Burnout – exaustão em função do excesso de trabalho – já são característicos da profissão de professor, que se agrava por fatores como carga horária extensa, baixos salários, falta de estrutura e segurança nas escolas, falta de suporte e preocupação com os alunos.
“O professor não trabalha apenas na sala de aula. Ele trabalha antes, em casa, no estudo e planejamento do conteúdo e, depois, nas avaliações, projetos e trabalho. Então, o professor não tem um horário e um local circunscrito e bem definido de trabalho, agora trabalhando em casa, menos ainda”, pontua a professora e psicóloga Aline Melina Vaz, membra do coletivo Rede de Educadores em Luta.
Sem dúvidas, a mudança brusca de rotina e as dificuldades impostas pelo ensino remoto pioram ainda mais a saúde mental dos professores, principalmente quando há falta de apoio emocional e treinamento por parte das instituições de ensino. Além disso, os professores também temem pela contaminação pelo novo coronavírus.
Na pesquisa “A situação dos professores no Brasil durante a pandemia”, da organização Nova Escola, de maio deste ano, 28% dos professores avaliaram sua saúde emocional como péssima ou ruim e 30%, como razoável. Apenas 8% dos educadores afirmam que se sentem ótimos.
Ainda de acordo com o levantamento do Instituto Península, 1 em cada 3 professores da Educação Básica relata ter piorado em certos aspectos da vida, como a prática de atividades de lazer e cultura, condicionamento físico e qualidade do sono.
Esse é o caso da professora Suzany Mangeth. Nos últimos meses, ela teve crises de insônia, alteração de apetite e oscilações de humor.
“É um grande desafio lidar com minhas próprias emoções. Tenho medo que eu ou alguém da família adoeça e de não atender às demandas da escola, além de ansiedade por não saber até quando esse modelo de trabalho vai se estender e por não saber lidar tão bem com crianças no modelo remoto e com a apatia dos adolescentes. O esgotamento é, praticamente, inevitável”, desabafa.
A docente Ana Carolina também relata sobre os impactos negativos da pandemia e do trabalho remoto na sua saúde psicológica:
“Eu estava pirando, com medo de pegar a doença, de acontecer algo com meus familiares, medo de perder o trabalho. Isso foi me desestabilizando. A qualquer reunião, eu já achava que seria demitida. Me sentia culpada mesmo sem ter culpa. Eu sentia frustração, por achar que as coisas que eu fazia não estavam boas e que a qualquer momento eu iria perder tudo”.
O lado emocional (medo, ansiedade, estresse etc.) tem atrapalhado trabalho 34% dos professores respondentes da pesquisa do Instituto Península. A psicóloga Aline Melina explica que os prejuízos a saúde mental em função do isolamento social aliado sobrecarga de trabalho certamente está afetando a qualidade das aulas, avaliações e planejamentos. “O trabalho de ensinar é um trabalho essencialmente intelectual. É necessário condições mínimas de saúde mental para executá-lo”, complementa.
A consultora educacional e psicóloga, Carla Jarlicht, expõe que a pandemia abalou três necessidades básicas do ser humano: “A pertença (relacionado aos vínculos afetivos, a importância de se sentir compreendido), a competência (relacionada à capacidade de estar no controle) e a autonomia (relacionado a nossa capacidade de tomar decisões tendo em vista as consequências)”.
Esses aspectos reverberam nas formas de pensar, sentir e agir do indivíduo. Por isso, é preciso observar os sinais de cansaço, irritação, ansiedade e tristeza. “Sempre que algum sentimento impedir aquilo que precisamos realizar, é preciso ligar o sinal de alerta”, adverte Carla.
O professor doutor em Ciências Sociais Gabriel Teixeira, também do coletivo Rede de Educadores em Luta, conta que a Plataforma de Apoio Psicológico aos Profissionais da Educação, desenvolvida pelo coletivo para conectar professores a psicólogos, recebe cada vez mais professores se sentindo ansiosos, inseguros angustiados e irritados, principalmente por estarem enclausurados em casa e com um sobrecarga de trabalho muito grande.
“A adaptação dos conteúdos presenciais para o remoto dá mais trabalho, é preciso produzir conteúdos sucintos, atrativos e dinâmicos. É quase um trabalho de youtuber. Mas, apesar de não serem treinados como youtubers, os professores estão sendo cobrados para serem youtubers. Então, ficamos mais ansiosos e irritados. Estamos o tempo todo on-line, recebendo mensagens, sendo solicitados por alunos e familiares de alunos, até a noite. A dificuldade de separação entre o trabalho e as tarefas domésticas traz uma sensação de estarmos sempre devendo trabalho, é horrível”, revela Gabriel.
Volta às aulas gera mais preocupações
Em algumas cidades, as instituições de ensino começam a voltar ao ensino presencial, mesclando atividades presenciais e remotas, no chamado ensino híbrido. A transição para outro modelo de ensino, novamente, traz novos desafios e preocupações aos professores.
Enquanto alguns apoiam a volta à rotina em sala de aula, outros têm medo de se contaminar pelo coronavírus. No último levantamento feito pelo Instituto Península, o nível de conforto em relação a volta às aulas era, em média, de 1,07, numa escala de 0 a 5.
A professora do Ensino Básico Carla de Almeida Dicolla é uma dos profissionais que se sentem inseguros e ansiosos com a volta das aulas presenciais. “A questão difícil está sendo a indecisão sobre o retorno às aulas presenciais, porque precisamos fazer todo um preparo psicológico para sairmos para rua, usarmos o transporte público e lidar com o fato de poder ser contaminado e contaminar os familiares. Isso causa uma ansiedade, pois eu não sei o que vai acontecer”, afirma.
A importância do apoio das instituições de ensino
Nesse retorno ao presencial, o apoio das instituições de ensino é imprescindível. De acordo com o levantamento do Instituto Península, ter condições sanitárias adequadas nas escolas é o que mais preocupa 86% dos educadores.
“Por isso, é importante que exista uma transparência e frequência na comunicação das redes com os profissionais e com as famílias, e que as medidas de proteção sejam construídas levando em consideração uma escuta ativa de toda a comunidade escolar e de forma integrada com a área da saúde”, explica Heloisa Morel, diretora-executiva do Instituto Península.
O professor e psicólogo Guilherme Pogibin, também do coletivo Rede de Educadores em Luta, salienta ainda que a gestão escolar precisa garantir que os profissionais não serão demitidos e nem terão redução de carga horária.
Nas escolas onde trabalham as educadoras Suzany e Ana Carolina, o apoio psicológico disponibilizado foi primordial para que elas pudessem pedir orientações de como lidar melhor com esse momento. “A psicóloga me falou sobre a importância de separar um tempo para nós: ler um livro, meditar ou fazer algo que eu goste”, relembra Suzany.
Dicas para manter a saúde mental
Os professores desempenham uma função digna de um herói, mesmo sem serem valorizados por isso. Mas, a psicóloga Carla adverte: “Eles não podem esquecer que, primeiramente, são humanos. E, por isso, podem direcionar para si mesmos o olhar generoso que direcionam para os seus alunos, respeitando assim, os seus próprios limites”.
Ao perceber alterações na forma de pensar e agir e sensações de cansaço, irritação, ansiedade ou tristeza, a dica da psicóloga Carla aos professores é respirar, falar sobre o que lhe aperta o peito e buscar ajuda especializada.
Caso você não esteja se sentindo emocionalmente bem e queira conversar ou só ser ouvido, entre em contato com o Centro de Valorização à Vida (CVV) pelo telefone 188 ou pelo site www.cvv.org.br. O atendimento é gratuito, sigiloso e funciona 24 horas por dia.
Para manter o corpo e mente sãos, professor universitário Josué tem reservado alguns horários para relaxar e sair da rotina do trabalho e mantém uma rotina de caminhada, leitura, música e atividades com a família.
O que ajudou a professora Suzany a ter mais qualidade de vida foi organizar meus horários, o que lhe ajudou a ter mais tempo para a família e para as responsabilidades domésticas, e conversar com pessoas mais otimistas. “De uns tempos pra cá, tenho tentado ver essa situação como passageira e como uma grande oportunidade de aprendizado”, finaliza.
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