É muito comum abrir o Spotify e dar uma olhada nas músicas mais ouvidas no momento. Não importa se é a lista das mais populares do mundo ou do Brasil, a certeza que temos é que, predominantemente, as músicas serão sobre o amor.
Pode ser de amor, de sofrência, saudade ou dor de cotovelo, mas elas sempre estão lá. Afinal, o amor é um sentimento universal.
Essa cultura de canções acerca do amor tem origem antiga. Durante a Idade Média, por exemplo, elas já eram as mais pedidas no movimento literário que ficou conhecido como trovadorismo.
No longínquo século XII, a época das grandes invasões havia acabado na Europa. A cidade ressurgia e havia progressos na economia e um ar cultural circulando pelo continente.
Como não havia mais guerras e invasões, não havia mais uma função definida para os cavaleiros, logo, tornou-se indispensável que eles possuíssem um novo ofício.
Essa nova função surgiu por meio das trovas, canções apresentadas à nobreza. Toda a devoção que antes era dedicada aos senhores feudais, agora era dedicada às damas da sociedade. O trovadorismo continuava trazendo uma relação de vassalagem.
Por ser apresentada em forma de canções, era um tipo de literatura oral, com o uso de metros regulares e muitas rimas, uma vez que elas auxiliavam no processo de memorização dos trovadores.
Havia uma submissão explícita à figura de Deus e à dama amada, que era idealizada como um ser de plena perfeição.
O homem era uma figura sofredora e completamente submissa, que se apaixonava por uma mulher perfeita, nobre, bela e, muitas vezes, casada.
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Dentro do campo das cantigas líricas, havia as cantigas de amor e as cantigas de amigo.
As canções de amor eram obras de puro sofrimento pelo amor que não era correspondido. A famigerada sofrência. Também conhecida como coita de amor.
O eu lírico, que é sempre masculino, nesse caso, não tinha nenhuma expectativa de que esse amor se concretizasse. Estava no plano das ideias.
Ele apenas se contentava em enaltecer a dama amada, sua senhora, e exaltar seu próprio sofrimento, enquanto servo de um amor impossível. Ele sempre dizia como sua senhora era a mais linda das mulheres.
A seguir, há um exemplo de cantiga de amor de Afonso Fernandes:
Senhora minha, desde que vos vi,
lutei para ocultar esta paixão
que me tomou inteiro o coração;
mas não o posso mais e decidi
que saibam todos o meu grande amor,
a tristeza que tenho, a imensa dor
que sofro desde o dia em que vos vi
Um exemplo de música atual que pode transmitir a ideia de cantiga de amor é a música Eu me apaixonei pela pessoa errada, do Exaltasamba:
É mais do que desejo é muito mais do que amor
Eu te vejo nos meus sonhos
E isso aumenta mais a minha dor
Eu me apaixonei pela pessoa errada
Ninguém sabe o quanto que estou sofrendo
Sempre que eu vejo ele do seu lado
Morro de ciúmes estou enlouquecendo
As cantigas de amigo, por sua vez, saem do campo da idealização e falam sobre amores que realmente se concretizaram. Normalmente, entre casais de origem simples, como os camponeses.
São canções, com a repetição de um refrão em cada final de estrofe, que falam sobre a saudade que o eu lírico feminino sente de seu amado, que está distante.
Em Portugal, era comum que os homens tivessem saído em navios para viagens de exploração.
É importante lembrar que, naquela época, a sociedade não permitia que as mulheres escrevessem, logo, por trás desse eu lírico feminino haviam escritores homens que tentavam passar, através das canções, o que eles achavam que as mulheres sentiam.
Não era muito apurado, afinal, para saber o que as mulheres realmente sentiam o correto seria que elas escrevessem. Representatividade importa.
A seguir, um exemplo de uma cantiga de amigo, de Martin Cadox, em que uma mulher conversa com as ondas do mar para que elas tragam seu amigo – usado aqui no sentido amoroso, romântico – de volta para casa, uma vez que ele partiu para uma viagem em um navio e ela está preocupada e com saudade:
Ondas do mar de Vigo
Se vires meu namorado!
Por Deus, (digam) se virá cedo!
Ondas do mar revolto,
Se vires o meu namorado!
Por Deus, (digam) se virá cedo!
Se vires meu namorado,
Aquele por quem eu suspiro!
Por Deus, (digam) se virá cedo!
Se vires meu namorado
Por quem tenho grande temor!
Por Deus, (digam) se virá cedo!
Apesar do tom de saudade, essas canções eram mais positivas do que as de amor, uma vez que falavam sobre um amor real, que realmente acontecera, em vez do amor idealizado e platônico, sem chances de acontecer.
Uma música atual que pode refletir esse sentimento é a canção Sintomas de saudade, da Marisa Monte.
Tô com sintomas de saudade
Tô pensando em você
Como eu te quero tanto bem
Aonde for não quero dor
Eu tomo conta de você
Mas te quero livre também
Como o tempo vai e o vento vem
Dentro do campo das cantigas satíricas, havia as cantigas de escárnio e as cantigas de maldizer.
Ambas tinham a função de criticar determinados comportamentos da nobreza, contudo, as de escárnio eram mais sutis.
Usavam palavras de duplo sentido, trocadilhos e ironia. As pessoas ouviam e sabiam de quem o trovador estava falando, mas não havia o nome dele ali explícito.
Ai dona fea! Foste-vos queixar
porque vos nunca louv’en meu trobar
mais ora quero fazer um cantar
en que vos loarei toda via
e vedes como lós quero loar:
dona fea, velha e sandia
As canções de maldizer, por outro lado, eram feitas pelos trovadores que não possuíam vergonha alguma em criticar o comportamento da pessoa e mencionar seu nome, para que todos soubessem de quem estava falando.
No exemplo a seguir, todos souberam que o eu lírico achava Martim Gil um homem feio:
Martim
Gil, um omen vil
se quer de vós querelar;
que o mandaste atar
cruamente a um esteo
dando-lhe açoutes bem mil;
aquesto, Martim Gil,
parece a todos mui feo
Um exemplo de cantiga de maldizer atual é a canção Putin, ganhadora de um Grammy, feita por Randy Newman para o presidente russo Putin, em que o compositor o critica, deixando bem claro para quem é o destinatário da mensagem.
Gostou desse clima de Idade Média e já está se imaginando como uma dama, com lindos vestidos, recebendo canções ou como um cavaleiro trovador?
Quer continuar na imersão desse mundo? Uma dica é assistir ao filme, ou ler o livro, As brumas de Avalon (2001), que conta a lendária história do Rei Arthur sob a perspectiva das personagens femininas!
Por fim, não importa se você tem um amor não correspondido, se está sentindo saudade do crush ou se tudo o que você quer fazer é soltar uma cantiga de maldizer na frente de todos na sala de aula (aconselhamos que você não faça isso), lembre-se: sempre há uma cantiga do trovadorismo para o que você está sentindo!
Interpretando historicamente a relação de vassalagem entre homem amante/mulher amada, ou mulher amante/homem amado, pode-se afirmar que: