Cotas Raciais: o que mudou na década da Lei de Cotas
A Lei de Cotas completa 10 anos em 2022. Saiba mais sobre as instituições precursoras, o antes e depois da Lei e números de estudantes no ensino superior
“As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.”
Este é o primeiro artigo da Lei de Cotas (Lei 12.711, de 2012), que completa 10 anos em 2022. Sancionado em agosto de 2012, o documento possui uma recomendação de revisão (Artigo 7º) ao chegar a uma década de existência.
A Lei de Cotas determina que das vagas destinadas aos estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas, 25% sejam atribuídas às pessoas com 1,5 salário mínimo per capita.
Além disso, a distribuição de vagas por cota racial e deficiência é feita com observação aos dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), para cada Unidade Federativa (UF) do país, e baseada nos indicadores populacionais de raça e deficiência (PCD).
Antes de observar o impacto dos 10 anos da Lei de Cotas, é importante destacar duas instituições que foram precursoras de ações afirmativas no país: a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade de Brasília (UnB).
Antes da Lei de Cotas
Em 2003, a UERJ divulgou o seu edital com as orientações de distribuição das vagas para estudantes que haviam cursado o ensino médio em escolas da rede pública. Na primeira edição do vestibular com cotas sociais e raciais, cerca de 63% das vagas foram ocupadas.
Atualmente, a instituição regulamenta 20% das vagas de cada curso de graduação com destino às pessoas negras, indígenas e oriundas de comunidades quilombolas; 20% a alunos da rede pública de ensino; e 5% a pessoas com deficiência e a filhos de policiais civis e militares, bombeiros e inspetores de segurança e administração penitenciária mortos ou incapacitados durante o serviço.
Leia mais: Por que os alunos negros são os mais impactados pela pandemia?
Também em 2003, a UnB aprovou o Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial que destinava 20% das vagas do vestibular para candidatos negros e a disponibilização de vagas para indígenas, de acordo com demanda específica. Com a medida em vigência no ano seguinte, a instituição de ensino foi a primeira universidade federal a aprovar ações afirmativas étnico-raciais para o seu processo seletivo.
Outras Leis Inclusivas – 10.639, de 2003
Em entrevista à Revista Quero, a Profª Drª Maria Fátima de Melo Toledo, que leciona a disciplina de História da África na Universidade de Taubaté, relembrou a importância do ano de 2003 para ações afirmativas e para a população brasileira.
A Lei. 10.639, de 2003, estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.
“A Lei de Cotas consolida uma série de medidas tomadas principalmente pelos movimentos negros. Foi a consolidação das lutas, tanto a Lei de 2003, quanto a Lei de 2012, que vem a promover a inclusão de grupos historicamente excluídos. Todo um processo histórico e uma dinâmica histórica que excluiu
[a população negra] por conta do racismo estrutural”, iniciou.“As políticas afirmativas ou medidas para combater a discriminação racial, elas existiram no passado e não começaram em governos atuais.
[…] A Lei (10.639, de Janeiro de 2003), ela foi muito importante e, ainda que tenhamos dificuldades na prática, hoje, os jovens apresentam conhecimentos sobre a África, sobre o processo de escravidão em relação às gerações anteriores. E essa é uma grande forma de combater o preconceito”, mencionou.Outro importante marco que antecede a Lei de Cotas (2012) é a promulgação do Estatuto da Igualdade Racial, em 2010, que ressalta a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.
Sobre as questões educacionais, o Estatuto “afirma a necessidade de implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades étnicas no tocante à educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de comunicação de massa, financiamentos públicos, acesso à terra, à Justiça, e outros”, segundo o Artigo 4º inciso VII da Lei. 12.288, de julho de 2010.
“Foi fundamental para a criação da Lei – (12.711) – em 2012. Ele é importante e atual para que haja fundamentação de todas as ações e políticas que forem pensadas. É um documento que embasa todas essas políticas”, afirmou Maria Fátima de Melo Toledo.
Aumento de negros no ensino superior
De acordo com o Censo da Educação Superior, em 2010, haviam 682.344 estudantes negros matriculados no ensino superior. Para comparação, avançando dez anos no calendário, e com a Lei de Cotas em vigência por sete anos, esse número seria ampliado para 3.265.715 de estudantes em 2020. Em outras palavras, um aumento de quase 400% de alunos negros no ensino superior.
Antes da Lei de Cotas de 2012, as ações afirmativas já estavam em vigência no país. O Gemma (Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa) define ações afirmativas como:
“Ações afirmativas são políticas focais que alocam recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão sócio-econômica no passado ou no presente. Trata-se de medidas que têm como objetivo combater discriminações étnicas, raciais, religiosas, de gênero, de classe ou de casta, aumentando a participação de minorias no processo político, no acesso à educação, saúde, emprego, bens materiais, redes de proteção social e/ou no reconhecimento cultural.”
Veja também: Cotas raciais: entenda tudo sobre o tema
Entretanto, o critério socioeconômico era protagonista na relação entre ações afirmativas e educação superior pública. De acordo com o estudo Ação Afirmativa no Brasil: Multiculturalismo ou Justiça Social, de João Feres Júnior e Luiz Augusto Campos, 60 das 70 universidades públicas brasileiras possuíam algum tipo de ação afirmativa, em 2011, para alunos oriundos de escolas públicas, e 40 instituições de ensino apresentavam medidas para alunos pretos ou pardos.
Entre as 40 instituições com medidas para alunos pretos ou pardos, 36 levavam em conta a renda ou a proveniência de escola pública dos candidatos. Ou seja, apenas quatro universidades públicas apresentavam ações afirmativas ligadas às questões étnico-raciais como critério, de acordo com o estudo.
O que mudou em 10 anos de Lei de Cotas?
Vale relembrar que a implementação da Lei de Cotas foi gradual no país. Em 2013, seguinte à sanção da Lei, 12,5% do número de vagas ofertadas foram reservadas e com o planejamento de aumento gradual das vagas para os estudantes que têm direito às ações afirmativas. Três anos depois, o aumento gradativo atingiu o número de 50%, que é a porcentagem atual para as vagas aos estudantes na Lei de Cotas.
No mesmo ano de 2013, a Unesp também estabeleceu a diretriz de 50% das vagas referentes aos cursos de graduação com destino aos alunos que cursaram de forma integral o ensino médio em escolas públicas. Dos 50%, 35% das vagas foram reservadas aos estudantes pretos, indígenas e pardos. Com a medida, a instituição foi a primeira estadual no estado de São Paulo que adotou ações afirmativas em seu processo seletivo.
Com a passagem dos anos, o cenário de redução da disparidade do acesso à educação foi ganhando notoriedade. Segundo a pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, realizada pelo IBGE, a quantidade de estudantes pretos ou pardos, entre 18 e 24 anos de idade, cursando ensino superior aumentou de 50,5% para 55,6% entre os anos de 2016 e 2018.
No ano de 2019, a maioria dos estudantes matriculados em cursos superiores no Brasil eram brancos, de acordo com o Censo da Educação Superior, do Ministério da Educação (MEC). Naquele ano, 42,6% se declararam brancos, 31,1% pardos, 7,1% pretos, 1,7% amarelos, 0,7% indígenas e 16,8% não declararam cor e raça.
Segundo levantamento feito pela Quero Bolsa, com os dados do Censo da Educação Superior, o percentual de alunos negros matriculados (soma de pretos e pardos) aumentou desde o ano de 2010 nas instituições de ensino superior (IES).
Em 2010, os estudantes pretos representavam 2,31%, os pardos representavam 8,39% e, portanto, a somatória de alunos negros era de 10,70% nas instituições de ensino superior. Em 2015, cinco anos do Censo e três anos após a implementação da Lei de Cotas, os números aumentaram para 5,35% (pretos), 21,71% (pardos) e, portanto, 27,07% de alunos negros nas IES.
Mais recentemente, o ano de 2019 apresentou dados ainda maiores que o de 2010: 7,13%, de estudantes pretos, 31,02%, referentes aos estudantes pardos, totalizando 38,15% de estudantes negros nas instituições de ensino superior.
Leia mais: Você já foi atendido por um médico negro?
+ Você já foi atendido por um médico negro?
A Lei de Cotas será modificada após a revisão?
Em decorrência do 10º ano de vigência da Lei 12.711, de 2012, diversos Projetos de Lei (PLs) foram criados por parlamentares com o propósito de ajustar, rever ou editar o modelo de ações afirmativas proposto em tempos atuais.
O primeiro exemplo é o Projeto de Lei 4656, de 2020, que determina revisão do programa especial a cada 10 anos para o acesso às instituições de educação superior de estudantes pretos, pardos e indígenas e de pessoas com deficiência. Além de propor as ações afirmativas em processos seletivos dos cursos de graduação de instituições particulares.
Outro exemplo é o PL 3422/2021, que prorroga a necessidade de revisão da Lei de Cotas até 2062. A finalidade é ampliar o tempo para revisões e adotar medidas complementares, como o início de um Conselho Nacional para melhorias e aprimoramentos através da veiculação de relatórios no período de cinco anos.
Por outro lado, o Projeto de Lei PL 1531/19 visa “retirar o mecanismo de subcotas raciais para ingresso nas instituições federais de ensino superior e de ensino técnico de nível médio”, de acordo com a própria ementa junto ao Senado, e o PL 5303/2019 que também deseja a revisão e exclusão sobre “a menção às cotas raciais para o ingresso em instituições federais de ensino”, afirma o documento.
Sobre o cenário de revisão da Lei de Cotas, a professora Maria Fátima de Melo Toledo, da UNITAU, se posiciona sobre o assunto: “Existem vários projetos de Lei que desejam diminuir as porcentagens
[de vagas] ou formas de ingresso. Houve um avanço e os resultados da Lei são evidentes. Se você pegar os números de 2010, houve um avanço de 400% nas universidades brasileiras”.Enquanto isso, novas instituições de ensino aprovam as cotas raciais para o processo seletivo. Em 2023, a Universidade Estadual do Pará, que possui 21 campi em 16 municípios, também confirmou a adoção das cotas étnicos-raciais para o ingresso nos cursos de graduação. No dia 29 de agosto, a Lei de Cotas completará 10 anos de continuidade e a revisão da Lei segue gerando debate entre a população e os respectivos representantes políticos.
Veja também: Universidades com maior presença de alunos negros no Brasil, segundo o MEC
+ As universidades com maior representatividade de professores negros, segundo MEC