Você já foi atendido por um médico negro?
Segundo dados do Ministério Público do Trabalho, menos de 2% dos médicos brasileiro se autodeclaram negros; falta de médicos negros ainda é legado da escravidão e reflexo do racismo
Em 2018, uma publicação feita pelo médico Fred Nicácio viralizou nas redes sociais. Dona Eunice, aos 74 anos, ficou emocionada ao ser atendido por ele, um médico negro. Essa foi a primeira vez que a moradora de Conceição de Macabu (RJ) teve a chance de ver alguém da mesma cor que ela em uma profissão majoritariamente branca.
Se você pudesse contabilizar a quantas vezes você já foi atendido por um médico negro, qual seria o resultado? Três ou duas vezes? Uma? Será que você já foi atendido por um médico negro alguma vez na vida?
De acordo com dados da Demografia Médica 2018, desenvolvida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), o Brasil possui cerca de 450 mil médicos registrados pelo órgão. Entretanto, apesar do levantamento não informar qual a cor dos seus inscritos, dados do Censo da Educação Superior apontam que estudantes de Medicina negros são minoria.
Entre os anos de 2009 e 2019, o número de matriculados autodeclarados negros no curso aumentou em cerca de 620%, porém, mesmo com o crescimento por conta da política de cotas raciais implementada pelo governo brasileiro no início da última década, esses estudantes correspondem apenas a 25% dos inscritos nessa graduação.
No quinto ano de Medicina da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Kleriene Souza conta que em sua sala apenas quatro estudantes são negros. “No início, éramos 40 alunos e cinco pessoas negras. Porém, uma passou em outro lugar e ficamos em quatro alunos negros dentre o total de alunos da sala.”
Um dos primeiros negros a se formar no curso de Medicina no Brasil foi Juliano Moreira. Nascido em 1873, Moreira ingressou na graduação da Faculdade de Medicina da Bahia em 1886, aos 13 anos, ainda antes do fim da escravidão. Formou-se aos 19 anos e foi um dos precursores da Psiquiatria no País.
Inserido no mundo acadêmico, o médico lutava contra a teoria de que o surgimento de doenças mentais se devia à miscigenação entre brancos europeus e outras raças vistas como inferiores, ao invés de fatores físicos e de circunstância.
A presença de negros na Medicina até o fim do século XX é tão concisa que não há registros sobre quem foi o primeiro a ingressar na carreira no Brasil.
“Por conta da escravidão, estivemos por muito tempo em um lugar de servir o homem branco e só ocupávamos trabalhos que não desejaríamos estar, pois eram os únicos possíveis”, explica Cátia Cipriano, psicóloga e coordenadora do núcleo de cuidados da Uneafro (União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora).
Uma parte da herança da escravidão no Brasil foi tirar a chance de que negros pudessem se desenvolver juntamente com a população branca, já que, ao fim desse período, o governo não deu apoio e suporte para que ex-escravos pudessem ser reinseridos na sociedade como um corpo digno de respeito.
Com o fim da escravidão, negros foram expulsos das fazendas, onde eram antes escravizados, e precisaram sozinhos lutar para conseguir sobreviver em meio ao racismo, sendo obrigados a aceitar subempregos para conseguir arcar com as necessidades básicas. No Brasil, por muitos anos educação foi um privilégio branco.
Como uma forma de corrigir os erros do passado, e após décadas de luta do movimento negro, em 2012 o governo federal sancionou a Lei nº 12.711, que garante a reserva de vagas para pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência que realizaram o Ensino Médio integralmente em escolas públicas brasileiras.
“Se hoje estou matriculada em uma universidade pública e em um curso elitista e classista, como a Medicina, é porque inúmeras pessoas negras e o movimento negro pavimentaram o caminho para que eu pudesse ter essa oportunidade”, ressalta Kleriene Souza.
Saiba mais: Como funciona o sistema de cotas raciais nas universidades brasileiras?
Racismo dentro do campus e nos portões dos hospitais
Apesar da política de cotas raciais permitir com que mais negros consigam ingressar no Ensino Superior, o meio acadêmico não é um local que foge à regra, o racismo ainda está intrínseco nesse ambiente, seja entre os próprios estudantes, quanto institucional ou estrutural.
“Nunca me chamaram de ‘macaca’, mas para mim é racismo explícito quando há poucos negros na minha turma, é racismo explícito quando eu estou atendendo com uma colega branca e ela felicitada pelo curso que ela escolheu e a paciente deduz que eu não faço medicina”, relembra Monique França, médica de Família e Comunidade formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Em uma dessas situações, França recorda a fala de um professor para um intercambista: “um professor disse para uma aluna estrangeira que estava em nossa turma que ela estava num curso privilegiado com a nata da sociedade carioca. E o que seria a nata da sociedade carioca? A gente sabe o que isso significa. E eu, uma estudante negra e moradora da Cidade de Deus, do ponto de vista hegemônico, não fazia parte da nata e, consequentemente, daquele lugar.”
A médica também aponta como o racismo institucional e estrutural impacta até mesmo na formação do profissional. “Quando a maioria dos seus professores não são negros ou não consideram essa questão racial importante para a sua formação, você pode acabar reproduzindo um processo de cuidado que é voltado para uma população branca. Porém, quando atendemos no SUS, temos mais contato com pacientes negros”.
De acordo com um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2008, a população negra naquele ano representava 67% do público total atendido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e a branca 47%.
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Kleriene está no quinto ano de Medicina e já passou por inúmeras situações de discriminação. “Desde de ser barrada na portaria do hospital por não acreditarem que eu poderia ser uma estudante de medicina a funcionários me ‘confundirem’ com paciente ou familiar mesmo estando de crachá e com outros alunos. Cheguei até a ouvir de docente que negros e cotistas diminuíram o nível da faculdade e não deveríamos estar ali”, conta.
Na Universidade de São Paulo (USP), que possui dois dos seis cursos de Medicina mais bem avaliados do Brasil pelo Guia da Faculdade, a excelência do ensino não impede que situações de racismo sejam relatadas cotidianamente.
“Recebemos denúncias que variam desde desabafos realizados por membros nas reuniões semanais, comentários sobre as dificuldades de relacionamento com os outros colegas nos mais variados espaços da faculdade, comportamentos nocivos por parte de professores, até atos mais evidentes, como episódios sistemáticos de abordagens racistas da segurança do campus”, lamenta Mariana Novaes, estudante de Medicina e Diretora Financeira e de Políticas Institucionais do Núcleo Ayé.
Apesar de ser uma das universidades mais importantes do País, a USP só incluiu o sistema de cotas em seu processo seletivo em 2018, sendo a última das estaduais paulistas a utilizar a reserva de vagas para candidatos pretos, pardos e indígenas.
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Como funciona o sistema de cotas para indígenas?
Coletivos formam rede de apoio dentro da Medicina
Um dos frutos dos movimentos sociais são os coletivos, grupo onde pessoas se unem a favor de um objetivo em comum e, desses grupos, surgiu o Coletivo Negrex.
“O Negrex vem com a missão de ser uma proposta de apoio mútuo entre os integrantes e um espaço de discussão de questões que são totalmente negligenciadas sobre a questão da saúde da população negra”, explica Monique França, que também é co-fundadora do coletivo.
Criado em 2015, o Negrex surgiu como um espaço de apoio para estudantes de medicina negros pudessem compartilhar as experiências vividas dentro do espaço acadêmico e debater temas da saúde da população negra. “Só que quando me formei da faculdade, percebi que não teria mais o Negrex, já que ele foi construído para apoiar estudantes, e aí eu sugeri que ele fosse ampliado para médicos também. Nós chamamos alguns médicos negros e isso foi muito importante para o coletivo”, relembra Monique.
Atualmente, o Negrex possui mais de 400 membros, entre estudantes e médicos, espalhados pelo Brasil.
Outro coletivo negro conhecido que apoia estudantes da área da saúde é o Núcleo Ayé, formado por estudantes da Faculdade de Medicina da USP, também conhecida como FMUSP.
“O Núcleo Ayé foi fundado em 2017, após a aprovação do sistema de cotas raciais na unidade, visando amparar os primeiros alunos cotistas que ingressariam na Faculdade de Medicina por meio dessa política afirmativa. Atualmente, a área de atuação do coletivo é muito mais ampla, se destinando a acolher e representar todos os alunos negros da graduação, da pós-graduação e residentes”, explica Mariana Novaes, Diretora Financeira e de Políticas Institucionais do coletivo.
O grupo oferece apoio para estudantes negros da Faculdade de Medicina e busca auxiliar os universitários desde a recepção para a matrícula, orientando sobre auxílios oferecidos pela instituição de ensino, a eventos abertos e intervenções físicas para criar um ambiente de integração dentro do espaço acadêmico.
Durante a pandemia, o Núcleo manteve as reuniões remotamente, realizou diversas ações para garantir que os alunos recebessem suporte institucional adequado para as aulas a distância, além de realizar um levantamentos recorrentes para descobrir quais eram as demandas dos estudantes durante a quarentena.
“Dessa forma, foi possível identificar dificuldades sociais, econômicas, de saúde mental e articular a reivindicação da solução dessas demandas”, aponta Mariana.
Além dos papel de apoiar novos alunos negros, os coletivos também lutam para que as universidades implementem ferramentas de verificação da autodeclaração, a fim de evitar fraudes. De acordo com um levantamento feito pelo jornal Estado de S. Paulo, cerca de um terço das universidades federais brasileiras já registraram ao menos uma denúncia de fraude.
“A ausência de banca de verificação no ato da matrícula na USP, já compromete a reparação prometida pelo programa, na medida em que a instituição não tem se movimentado para garantir que essas vagas sejam de fato ocupadas por ingressantes pretos, pardos ou indígenas” queixa-se a Diretora Financeira e de Políticas Institucionais do Núcleo Ayé.
Veja também: Por que estudantes brancos burlam o sistema de cotas raciais?
Kleriene Souza, estudante de Medicina da UFMT, ainda relembra que mesmo quando expostos os fraudadores sofrem menos retaliação do que aqueles que utilizam das cotas raciais por direito: “Muitas vezes os fraudadores de cotas não são punidos e obtém seus diplomas, enquanto muitas vezes alunos que têm o direito às cotas são hostilizado durante todo o curso devido ao racismo.”
Mulher e negra: desafio duplo dentro da profissão
Para médicas negras, além de enfrentar diariamente o racismo dentro da profissão, há ainda o machismo.
“Ser uma médica negra impacta muito no meu dia a dia. Às vezes, esse atravessamento do gênero associado à raça faz várias coisas ficarem duvidosas, por exemplo, será que foi racismo ou pelo fato de eu ser mulher a dúvida ou não reconhecimento de ser médica?”, explica a médica de Família e Comunidade, Monique França.
Kleriene ainda está na graduação, mas já enxerga como a discriminação de gênero será mais um desafio ao se tornar médica.
“Muitas vezes sou ‘confundida’ com outros profissionais, porém nunca me confundiram com estudante de medicina ou médica. Em algumas situações sou vista até mesmo como familiar de paciente ou paciente do SUS, algo que não é um demérito, mas por que mulheres negras só podem estar em um lado da mesa do consultório e nunca no outro?”, questiona.
Isabel dos Santos formou-se em medicina pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel) em 1974. Foi uma das primeiras mulheres negras a conseguir o diploma no curso pela Faculdade de Medicina da universidade. Aos 73 anos, ela ainda passa por situações de discriminação.
“Comecei a atender pacientes no último ano do curso de Medicina. Ouvia coisas como ‘Dá pra chamar o médico?’. ‘Eu sou a médica’, respondia, ‘mas, se você quiser, posso chamar outra colega’. Até hoje isso acontece. E olha que me formei em 1974. Se estou com o avental, me perguntam ‘A senhora é enfermeira?’. Dificilmente pensam que sou médica. Mas sou a médica”, contou em reportagem para o portal GaúchaZH em 2019.
No Brasil, a primeira mulher negra a se formar em Medicina foi Maria Odília Teixeira. A baiana concluiu os estudos em 1909 e, apenas cinco anos depois, foi a primeira professora negra da Faculdade de Medicina da Bahia.
Confira: Qual é o perfil do cotista racial no Brasil?
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Crescimento de negros na Medicina depende também de suporte psicológico
Apesar da política de cotas ter auxiliado no crescimento da população preta e parda nos cursos de Medicina oferecidos ao redor do Brasil, a permanência ainda é um motivo pelo qual coletivos e o movimento negro se mobilizam.
Para amparar financeiramente, muitas universidades oferecem para os alunos cotistas ou de baixa renda auxílio financeiro para que eles possam arcar com as necessidades básicas durante a graduação.
Segundo um levantamento feito pelo Quero Bolsa com base nos dados mais recentes do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), cerca de 20% dos estudantes concluintes negros no curso de Medicina em 2019 receberam algum tipo de bolsa permanência durante a graduação. Na Uerj, por exemplo, todo estudante cotista deve receber um apoio financeiro, além de aquisição de material didático e Passe Livre Universitário no município do Rio de Janeiro.
Porém, outra demanda que urge por atenção é o apoio psicológico. “Eu acho que a política de cotas é importante, mas não o suficiente para aumentar a quantidade de negros na universidade. É necessário uma política de permanência. E quando a gente fala de permanência, não é só infraestrutura, mas acolhimento psicológico e entender quais são os atravessamentos que um estudante negro pode ter”, explica Monique França, médica e co-fundadora do Negrex.
Quando estava no quarto semestre do curso na UFMT, Kleriene foi diagnosticada com depressão grave. A mudança para uma cidade desconhecida, a universidade branca, o racismo estrutural e institucional enfrentado diariamente, o sentimento de rejeição dentro do curso e a pressão das aulas tornou tudo insustentável.
“Foi um período bem traumático, mas consegui lidar porque tive o apoio da minha família o tempo todo e acesso a terapeuta, psiquiatra e a medicação para lidar com essa doença. Até hoje faço terapia para lidar com o nada sutil racismo que infelizmente tenho que lidar’, conta.
“Lidar com a perspectiva que a academia tem uma pessoa negra para 30 a 40 estudantes brancos, por exemplo, é algo cruel. Além disso, as instituições não se importam com o que aquele aluno está enfrentando. Por isso, esse aluno precisa ser acolhido, motivado e ser visto para se sentir pertencente”, explica a psicóloga Cátia Cipriano.
Considerando a sua experiência, Kleriene acredita que as universidades não estão prontas para lidar com a saúde mental dos alunos, ainda mais daqueles que são negros. “Muitos das causas dos nossos sofrimentos são minimizadas e diminuídos, são vistas como exagero ou invenção.”
Mariana Novaes, membro da diretoria do Núcleo Ayé, também considera que as instituições não estão prontas para dar o apoio psicológico necessário ou para suportar a demanda. “No momento, precisamos nos articular com parcerias externas e acionar redes de contatos particulares para tentar solucionar as diversas demandas de saúde mental que recebemos com frequência. Por isso, não acreditamos que a USP esteja pronta para receber e amparar os alunos negros por esse aspecto”, explica.
“Por isso, entendemos que apenas as bolsas financeiras não são o suficiente. Elas são muito importantes, é verdade, mas sem outros elementos, como saúde mental, auxílio em situações acadêmicas, e, sobretudo, instauração de um ambiente universitário seguro e livre de racismos, é impossível pensar em uma permanência universitária saudável para o estudante negro”, chama a atenção a futura médica
Com o apoio de uma universidade mais inclusiva e acolhedora, as cotas raciais terão o seu efeito potencializado permitindo com que a Medicina deixe de ser uma profissão branca e elitista e que cenas como a que Fred Nicácio retratou nas redes sociais se tornem cada vez mais recorrentes.
Monique lembra com carinho a vez em que uma paciente conseguiu se enxergar nela. “Algo que a gente deve falar é de como os pacientes ficavam felizes de me ver ali. Tive uma paciente que me disse ‘Você não sabe a alegria de como é ter pessoas como a gente sentada no lugar onde você está’. Nós nos abraçamos e choramos, nunca vou esquecer”. Por uma medicina com cada vez mais Moniques, Klerienes, Marianas, Isabéis, Freds, Marias e Julianos.
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