Fraudadores de cotas: por que estudantes brancos burlam o sistema de cotas raciais?
Utilizando a autodeclaração, centenas de estudantes que não têm direito às política de cotas raciais ingressam em universidades públicas utilizando as vagas reservadas para negros
Além da pandemia do novo coronavírus, o mês de junho de 2020 também ficou marcado pelos protestos em diversos países contra a violência policial.
Nos Estados Unidos, a chama foi acesa pela morte de George Floyd, um homem negro faleceu após ser enforcado por um policial branco. Derek Chauvin, policial da cidade de Minneapolis, ficou ajoelhado no pescoço Floyd durante oito minutos e quarenta e seis segundos.
O vídeo com George apelando por sua vida e dizendo repetidamente “não consigo respirar” viralizou no mundo. Com isso, o mantra “Vidas Negras Importam” voltou à discussão. No Brasil, o movimento negro também se posicionou contra a violência policial, Segundo dados 13ª edição do Anuário da Violência, 75% dos mortos pela polícia brasileira são negros.
Além dos protestos contra a violência física, membros de uma rede social se mobilizaram para expor outro tipo de crime contra essa população, com isso surgiu a iniciativa de denúncia dos “fraudadores de cotas”.
Em menos de 24 horas, a conta, de mesmo nome, ganhou mais de 100 mil inscritos e inúmeras denúncias de pessoas que ingressaram em universidades públicas do Rio de Janeiro por meio de cotas raciais, mas que tinham características físicas de pessoas brancas.
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Influenciados pela conta de delação de trapaça em universidades cariocas, estudantes de outros de todos os cantos do Brasil aderiram à iniciativa e criaram perfis para divulgar as fraudes em universidades de outros estados.
Em 2020, a Universidade Estadual Paulista (Unesp) expulsou 30 alunos que ingressaram na instituição por meio das cotas raciais, mas não seguiam os pré-requisitos. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mais de 280 denúncias foram feitas desde a implementação da comissão de avaliação. Na Universidade de São Paulo (USP), cerca de 40 queixas estão em análise.
Cotas raciais no Brasil a caminho das fraudes
“As ações afirmativas são políticas de promoção de igualdade e de oportunidade para grupos que padeceram de injustiças históricas, como é o caso da população negra, mas também poderíamos falar dos povos indígenas, das mulheres e da população LGBTQI+”, explica Marcilene Garcia de Souza, professora de Sociologia e diretora de políticas afirmativas e assuntos estudantis do Instituto Federal da Bahia (IFBA)
Desde que a Lei de Cotas foi implementada no Brasil, em 2012, todas as universidades e institutos federais devem reservar uma porcentagem das suas vagas para candidatos pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência oriundos do Ensino Médio público brasileiro.
Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012
“As cotas raciais foram as mais conhecidas porque essas políticas surgiram a partir da reivindicação do movimento negro, mas hoje temos uma diversidade de grupos beneficiários, como por exemplo a UFABC aprovou em 2019 a reserva de vagas para pessoas trans. Sua aplicação se dá a partir do entendimento da dificuldade de acesso de grupos sociais devido a condições de desigualdades estruturais e históricas”, aponta Juliana Jodas, educadora social e membro do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (CPEI/Unicamp).
As cotas raciais são um subgrupo das cotas sociais, que são ações afirmativas para estudantes do ensino público brasileiro. Por isso, desde o início da implementação, a única obrigatoriedade é que o estudante comprove sua formação e renda familiar, sendo que a raça deve ser autodeclarada, ou seja, o candidato é o único responsável por afirmar qual é a sua etnia.
Sem bancas de avaliação para a comprovação das informações, até 2018, cerca de um terço das universidades federais brasileiras já registraram ao menos uma denúncia de fraude, de acordo com levantamento feito pelo Estado, por meio da Lei de Acesso à Informação.
“Já recebemos mais de 1000 denúncias de diversos cursos da Universidade, de todos os campi da USP. Desde então, já apresentamos perante à Universidade ao menos três documentos com provas materiais acerca das constatações de fraudes na USP”, conta Lucas Módolo, coordenador do Comitê Antifraude às Cotas da USP e mestrando em Direito do Estado.
Apesar do nome levar a entender que essa iniciativa parte da instituição, o Comitê é uma organização formada por estudantes da USP e surgiu como uma resposta às suspeitas de fraudes que surgiram em 2018. Com o propósito de garantir que a política de cotas seja adequadamente implementada e fortalecida, a iniciativa busca dialogar com o corpo discente e a administração da Universidade.
“Para contribuir no combate às fraudes, optamos por criar um canal de recebimento de denúncias anônimas de possíveis casos de fraudes que tenham ocorrido quando da inscrição no sistema de cotas étnico-raciais adotado para ingresso em cursos da USP. Este método de recepção de denúncias tem permitido o envolvimento de toda a comunidade acadêmica na defesa da política pública de reserva de vagas para estudantes PPI (pretos, pardos e indígenas)”, explica.
Ainda em 2005, quando a Lei de Cotas ainda era uma demanda no congresso do movimento negro, a Universidade Federal do Paraná (UFPR), que implementou a reserva de vagas em 2004, inovou com a organização da primeira banca brasileira de validação para candidatos que se autoidentificaram como pretos e pardos.
“Partia-se do pressuposto do valor que era dado à população negra, como a sociedade enxergava os negros. A população brasileira tinha dificuldade em reconhecer o valor e a importância a população negra para o País e, consequentemente, a importância das cotas raciais para a população negra. Na primeira comissão que eu participei, em 2005, já havia pessoas brancas se autodeclarando negras” relembra Marcilene.
Para a professora do IFBA, esse tipo de banca de validação só se tornou mais visível nos últimos anos devido a pedidos do movimento negro e também às denúncias realizadas por estudantes cotistas raciais.
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Universidades públicas: rivais ou cúmplices do racismo?
O modelo utilizado pela UFPR foi utilizado de inspiração para outras universidades públicas brasileiras para o desenvolvimento de bancas de heteroidentificação, porém são poucas as instituições de ensino que possuem esse tipo de banca.
A UFRJ, por exemplo, apesar de ter sido oficialmente fundada em 1920, é oriunda da Escola Politécnica, criada em 1792 por Dona Maria I, então rainha do Brasil colônia. Em seus mais de 227 anos, apenas em 2020 a Universidade conseguiu desenvolver uma avaliação de heteroidentificação, e foi somente em 2019 que denúncias de fraudes começaram a ser apuradas.
No fim, seriam as fraudes um reflexo do racismo institucional?
“A gente tá falando de algo que tem a ver com omissão, impacto de silêncio de instituição e de gestores em não assegurar que a política de cotas raciais se tornassem efetivas. Em algumas universidades isso
[banca de avaliação] veio muito tarde e em algumas não existe ainda. Isso é como racismo institucional vai operando dentro das instituições. Por que as instituições nunca fiscalizam antes? Se elas acreditam que não havia fraudes, eu não acredito nisso” critica Souza.Em entrevista ao UOL, Denise Pires de Carvalho, atual reitora da UFRJ, afirmou que a Universidade foi omissa: “A UFRJ se omitiu, o que levou à situação dos próprios estudantes terem que pesquisar e denunciar. Isso porque a universidade se omitiu.
[…] A UFRJ não tratou o tema com a seriedade merecida e, para que a lei das cotas raciais seja seriamente implantada, a universidade precisa fazer essa análise.”Como coordenador do Comitê Antifraude da USP, Módolo acredita que a falta de ação do meio institucional auxilia para que fraudadores existam, seja por má-fé ou por desconhecimento.
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“Meu alinhamento com o método de combater as fraudes pelo meio institucional parte da perspectiva de que as fraudes são um reflexo institucional das universidades do país, e não de pena de pessoas que, contaminadas por um discurso mal formulado sobre colorismo, se convenceram de que são pardas para fraudar cotas raciais e comprometer o futuro de dezenas de famílias negras que jamais pensaram ver o filho em uma universidade pública”, aponta.
Por que as pessoas fraudam?
Com o advento da internet, o número de informações sobre as cotas raciais e, principalmente, sobre quem tem o direito a elas aumentou de forma exponencial. Porém, de acordo com o Google Trends, a busca pelo termo “cotas raciais” diminuiu cerca de 60% em 2020 quando comparada a março de 2004.
Larissa Busch foi uma das alunas denunciadas por fraude e admitiu em suas redes sociais que realmente ingressou no curso de Comunicação Social da UFRJ por meio da política de cotas.
Larissa, que ingressou no curso em 2014, mas decidiu abandonar o curso em 2016 ao perceber que havia cometido um erro, se autodeclarou parda e garantiu a vaga no lugar de um aluno negro.
“Acreditava que ter uma bisavó negra me tornava não-branca. Eu estava errada.
[…] Ancestralidade NÃO me torna parda. Eu sou uma mulher branca e tive muitos privilégios por isso”, assumiu em publicação.Afinal, o culpado pelas fraudes é pela falta de conhecimento ou a desonestidade?
Juarez Tadeu de Paula Xavier é presidente da Comissão Permanente de Verificação da Unesp e, para ele, em sua maioria, as fraudes são causadas por pessoas que não aceitam as ações afirmativas.
“O que as apurações tem mostrado, não apenas na nossa universidade, na Unesp, mas também nas outras, é que há um grupo de pessoas que não se conformam com a democratização do acesso à universidade pública. De uma certa forma, parece que é uma resistência daqueles que tiveram os seus privilégios conformados em direito e não querem abrir mão de uma ação democrática na universidade”, declarou em entrevista à Revista Quero em 2018.
Atuando diretamente com o recebimento de denúncias de fraudes na USP, Lucas Módolo acredita que aqueles que fraudam sabem o que estão fazendo.
“Por muito tempo eu acreditei que as pessoas fraudavam por pura crença de que se identificavam mesmo como beneficiárias da política. Meus mais de dois anos de experiência na coordenação do Comitê mostraram que eu estava errado. Falo com tranquilidade: a maioria das fraudes em cotas na USP foi feita por pessoas sobre as quais não recai qualquer dúvida sobre não serem negras”, lamenta.
Para Marcilene, que também atua como diretora de políticas afirmativas do IFBA, as fraudes ocorrem porque as universidades não fiscalizam e, consequentemente, a negação de direitos da população negra se naturaliza, seja na área da educação, saúde ou segurança.
“Como a sociedade historicamente naturalizou que negros estivessem nas universidades públicas limpando ou servindo doutores brancos, essa universidade precisou, tensionada de muita luta do movimento negro para que a universidade cumprisse sua função social, atender toda a sociedade, não apenas uma parte”, analisa.
Quem tem direito às cotas raciais?
Outro motivo que pode facilitar ainda mais a visão de que ancestralidade define se você tem direito a cotas raciais é a miscigenação.
Após o fim do período de escravidão legalizada no Brasil, houve uma política do Estado brasileiro que visava embranquecer a população brasileira com a vinda de imigrantes europeus, a fim de diminuir a quantidade de negros no País.
“A figura do mestiço surge a partir da década de 1930 enquanto figura emblemática da identidade nacional, sob o discurso popular que ‘não há como definir quem é negro no Brasil” ou ‘somos todos mestiços’. Essa particularidade de nossa história refletiu em um caminho bastante dificultoso no debate público sobre o racismo e a própria afirmação da negritude brasileira”, explica Juliana Jodas.
Isso corrobora com o mito de que a ancestralidade garante o direito à cota.
Entretanto, aquele que passa por situações de racismo no Brasil é o preto e o pardo que possuem características físicas que o associam à sua raça, ou seja, a cor da pele, a textura do cabelo e traços faciais. Como a discriminação é realizada de acordo com o fenótipo de cada pessoa, e não por sua ascendência, a política de cotas reserva vagas para negros de acordo com o fenótipo.
Característica aparente ou observável de um indivíduo, determinada pela interação de sua herança genética (genótipo) e pelas condições ambientais – Michaelis de Língua Portuguesa.
“A sociedade produz raças sociais, que dividem as pessoas a partir de suas aparências raciais. Por essa razão é tão importante que os programas dessa natureza Brasil afora levem em conta, no caso das cotas para pessoas negras, principalmente seu fenótipo, e não a autodeclaração ou a ascendência, como ocorre em alguns programas dos quais tive a oportunidade de conhecer”, reforça Lucas Módolo.
Marcilene também acredita que avaliar o fenótipo é a única forma de que as cotas realmente ajudarão a diminuir a desigualdade: “Pessoas socialmente brancas no Brasil não sofrem de discriminação racial, portanto não são sujeitos de direito da política de cotas raciais, mesmo que eventualmente tenham parentesco com pessoas negras. A nossa sociedade não pode perder mais talentos negros que estão aptos a entrar no Ensino Superior.”
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Indígenas na mira das denúncias
Apesar do “sucesso” dos perfis de denúncias de fraudes, muitos deles foram deletados em menos de 48 horas, entre eles, a conta que iniciou todo o movimento. Um dos motivos foi a denúncia rrôneas de estudantes que não estavam fraudando as cotas.
Larissa Sá, de origem do povo Tikum-Umã, foi injustamente listada como uma pessoa não-indígena e acordou com inúmeras mensagens de ódio e ameaças por ser uma fraudadora.
De acordo com as mensagens, a estudante de Medicina da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) não tinha traços indígenas e, por isso, não merecia a vaga.
“É triste que as pessoas não indígenas ainda acreditem que ‘ser indígena’ está relacionado a um modo de ‘se apresentar’ ou de ‘se portar’ que se remete a traços fenotípicos e a modos e costumes extremamente exóticos, como aquela imagem muito incorreta e ultrapassada que se tem sobre os indígenas como pessoas que vivem nuas, no meio das florestas, que não falam português, que tem cabelos lisos, pretos e compridos, pele avermelhada”, explica Talita Larazin Dal Bo, antropologa social e pesquisadora de Centro de Estudos Ameríndios (CEstA/USP).
A pesquisadora lamenta que a população brasileira ignore o processo histórico de mais de 500 anos de invasão europeia no Brasil, que culminou na mistura de fenótipos e costumes.
Para ter direito à vagas de cotas raciais, além dos documentos exigidos de acordo com cada instituição de ensino, é preciso que o indígena tenha o Registro de Nascimento Indígena (Rani) e/ou a carta de recomendação emitida por uma liderança indígena de uma região ou ancião indígena reconhecido.
Quando Larissa foi avaliada pela banca da UFMA, devido ao fenótipo, teve a sua vaga negada, porém ela conseguiu comprovar o seu direito posteriormente.
“É por motivos como esse que devemos defender as cotas. Precisamos de voz, precisamos ser ouvidos e melhores interpretados. Não só a cota indígena. Ser indígena é questão de pertencimento e não de fenótipo. As pessoas precisam se educar intelectualmente para assim educar o coração e parar de espalhar ódio”, publicou em suas redes sociais.
Com o subsídio das ações afirmativas, a participação indígena no Ensino Superior brasileiro aumentou em 695% em quase dez anos, é o que aponta um levantamento realizado pelo Quero Bolsa, de acordo com os dados do Censo da Educação Superior.
“As cotas são de fundamental importância para que indígenas tenham acesso à vida acadêmica, tanto na rede privada, quanto especialmente na pública. Antes das cotas, a presença indígena nas universidades públicas era quase nula ou dependente de um auxílio. Foi somente a partir das políticas de cotas, que os povos indígenas passaram a acessar de maneira mais ampla e significativa o Ensino Superior”, reforça Talita.
As imagens utilizadas para ilustrar a reportagem fazem parte do projeto “Ah, branco, dá um tempo”, desenvolvido em 2015 por Lorena Monique, então estudante da Universidade de Brasília (UnB). Nas mensagens, alunas e alunos negros da instituição denunciam frases discriminatórias ouvidas por estudantes cotistas.