Damas em Ação: universitárias buscam protagonismo de mulheres no xadrez
Antes do sucesso de "O Gambito da Rainha", universitárias já incentivavam e buscavam trazer protagonismo ao xadrez feminino
No xadrez, a dama é considerada a peça mais poderosa de um jogador. Se movendo por todo o tabuleiro na diagonal e horizontal, ela é decisiva nos resultados das partidas, e a desvantagem de perdê-la pode dificultar as estratégias do enxadrista durante o jogo.
Mas quando o assunto é a presença feminina no xadrez, a falta de visibilidade e incentivo é um desafio enfrentado por aquelas dentro desse cenário. Entre os 5.475 enxadristas brasileiros ranqueados pela Federação Internacional de Xadrez (FIDE), apenas 644 são mulheres, o que representa 11% dos jogadores – mesma média do ranking internacional.
A presença de mulheres no xadrez é tema da série “O Gambito da Rainha“, da Netflix, que foi vista por mais de 62 milhões de pessoas nos primeiros 28 dias no ar. Antes da produção se tornar a minissérie mais assistida da plataforma, a enxadrista Julia Alboredo, de 23 anos, já havia começado a mover as peças para colocar as mulheres em evidência no cenário da modalidade no Brasil.
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Em 2018, percebendo a carência do esporte feminino, ela estava no grupo de mulheres que criou o projeto “Damas em Ação“, que busca valorizar e dar visibilidade às jogadoras de xadrez no país e incentivar novas atletas que estão começando nos tabuleiros.
Competindo em torneios desde os sete anos de idade, Julia não via entre as mulheres a mesma união que os homens tinham nos treinos e torneios. “Começamos a refletir: por que não as mulheres também? Por que não podemos nos unir, viajar juntas para competições, incentivar o xadrez de base, poder treinar juntas? Aí surgiu a ideia do projeto”, conta a enxadrista, que é estudante de Química na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Colega de Julia no Damas em Ação e companheira nos principais torneios universitários de xadrez do Brasil e do mundo, Kathiê Librelato (22) joga desde os dez anos e vê a importância de projetos como esse darem visibilidade também nas redes sociais, com conteúdos e eventos relacionados ao xadrez.
“Acredito que iniciativas como esta são fundamentais na luta por mais espaço e visibilidade, tanto das mulheres dentro do xadrez como da modalidade em meio ao mundo externo”, diz a jogadora, estudante de Educação Física na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc).
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O xadrez universitário no Brasil
Além de estarem juntas em olimpíadas, torneios mundiais, pan-americanos e nacionais, Julia e Kathiê dominam o cenário do xadrez universitário no Brasil. As duas contam com bolsas de estudo de incentivo ao esporte em suas faculdades. Kathiê, que já atua como auxiliar técnica, vê a formação em Educação Física como uma maneira de ampliar a sua relação com o esporte.
Julia mudou de faculdade por causa do xadrez. Ela não pôde entrar diretamente no Mackenzie porque estava participando de um campeonato na data do vestibular. Ela recomeçou o curso de Química em 2018 por causa do apoio que receberia da instituição.
“Em 2016, fui para a olimpíada de Baku, no Azerbaijão, e perdi duas semanas de aula. Quando voltei, tive compreensão zero na faculdade e tive que fazer cinco provas em um dia”, ela relata. “Não tinha um apoio nem perto do esporte que tenho no Mackenzie, e isso foi o ponto de partida fundamental para eu mudar de faculdade.”
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Além de já assumir protagonismo em torneios profissionais no Brasil e no mundo, a dupla também é destaque nos campeonatos universitários. Desde 2017, elas se revezam nas primeiras posições do pódio nos Jogos Universitários Brasileiros (JUBs) e o troféu de campeã universitária está na prateleira das duas.
Em 2018, elas integravam a equipe brasileira que conquistou o 3º lugar no Mundial Universitário de Xadrez e também têm conquistas em torneios das Américas.
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“Cada conquista ajuda a mostrar que é possível seguirmos na trajetória esportiva, e ter oportunidades de seguir competindo e crescendo é fundamental também para a questão de bolsas universitárias e outros apoios”, afirma Kathiê.
Julia compara as competições universitárias com as olimpíadas, onde é possível representar o país e a universidade em jogos contra os melhores atletas do mundo. Ela destaca a importância de adquirir experiência em torneios como esses. “Eu acredito que é uma boa oportunidade não só de colocar em prática aquilo que você vem estudando, mas também o espírito da competição em si é uma experiência bem bacana.”
No Brasil, a organização de eventos nacionais para estudantes é da Confederação Brasileira de Desportos Universitários (CBDU).
“O esporte universitário é um período na vida dos alunos-atletas muito importante, e assim buscamos oportunizar experiências esportivas gratificantes, pois com certeza ficam marcadas para o resto de suas vidas”, explica o diretor de Esportes e Eventos da CBDU, Alessandro Battiste. “A melhor forma de incentivar é dar a oportunidade de participação, e é isso que fazemos”, completa.
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A “rivalidade sadia” entre Julia e Kathiê nos tabuleiros universitários é um fator que aproxima e incentiva as duas a continuarem os estudos e desenvolverem o jogo. Para Julia, “uma motiva a outra indiretamente”. Já Kathiê conta que a colega foi um de seus primeiros desafios no xadrez e enaltece poder jogar contra Julia. “A disputa segue nos tabuleiros, mas fora das 64 casas é realmente uma parceria”, ela brinca.
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O Gambito da Rainha e mulheres no esporte
“O Gambito da Rainha” foi ao ar em outubro e logo colocou o xadrez em alta. A trama gira em torno da protagonista Beth Harmon, que fica órfã quando criança e aprende a jogar com o zelador do orfanato onde vive na infância. Com o sucesso da série, buscas por termos relacionados ao xadrez no Google aumentaram em até 300% e as vendas de tabuleiros subiram 273% no site americano eBay.
A boa repercussão anima as enxadristas. “Eu achei muito bacana por colocar o xadrez em pauta e pela qualidade”, conta Kathiê Librelato. “Temos ainda muitas vezes esse estereótipo da modalidade como algo chato, então mostrar como é emocionante é algo super legal.”
Por ter uma protagonista mulher em um esporte majoritariamente masculino, o seriado pode encorajar muitas jogadoras a seguirem nos tabuleiros. “Acredito que muitas delas se motivaram”, afirma Julia Alboredo. “Quando você vê uma representação ali, como a Beth, isso é bem interessante para ter um parâmetro e um espelho.”
A enxadrista percebe esse crescimento feminino na prática do xadrez, principalmente online, segmento em que atua desde março de 2020. Julia é uma das mulheres pioneiras a atuar como comentarista de transmissões pela internet de partidas de xadrez, pela plataforma Chess24.
“A mulher está começando a tomar alguns papéis importantes, e com isso a gente pode incentivar o xadrez feminino de pouco a pouco. Eu fico feliz quando muitas meninas me escrevem e falam que gostam das minhas transmissões e lives. Eu sei que, de alguma forma, eu estou ajudando o xadrez feminino.”
Mas o caminho ainda é longo e o preconceito é uma realidade. “Eu sofri muito no começo, as pessoas não estavam aceitando que tem uma mulher ali comentando, então sofri várias ofensas”, Julia relata.
“Ainda sofro com o machismo nas transmissões praticamente todos os dias.Mas o que me motiva é o xadrez, porque eu acho que o xadrez é muito maior. E, claro, as pessoas que apoiam, que são muito mais importantes do que aquelas que criticam. Desistir de tudo isso é o que eles querem, então a gente tem que batalhar pelo xadrez”, conta a atleta.
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Rumo à Maestria
O “Damas em Ação” tem um nome que complementa um dos objetivos do projeto: “Rumo à Maestria“, uma alusão aos principais títulos dados aos enxadristas, “Mestre” e “Grande Mestre”. A pandemia pode ter atrapalhado um pouco os planos de Julia e Kathiê, que preferem os jogos presenciais às partidas virtuais. Mas a ambição no xadrez continua entre os objetivos das duas.
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“Por conta da pandemia, os planos vão ser um pouquinho postergados, mas a minha ideia é ser Grande Mestre, tanto feminino e, quem sabe, mais para frente, grande mestre absoluto”, conta Julia, que carrega o título de Mestre Feminina da FIDE.
Kathiê, que tem o título de Mestre Feminina Internacional, segue com os mesmos planos. “A curto-médio prazo, uma meta é o título de Woman Grandmaster, ainda inédito para o Brasil, mas por que não os títulos absolutos também? Na verdade, eu e o Claudionor
[Pirola, técnico de xadrez] sempre buscamos estruturar um treinamento com foco no crescimento técnico, então essas conquistas devem vir como consequências mesmo”, conta a enxadrista.Leia também:
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