Professores esbarram em falta de estrutura e formação para uso da tecnologia no ensino
Pandemia do coronavírus evidenciou dificuldades para que professores pudessem usar as tecnologias nas aulas
Atualizado em 15/10/2021
Uma folha de papel frente e verso. Esse é o espaço que a professora Laura Miranda possui para enviar o conteúdo das aulas de Educação Física de todo o bimestre para os alunos da escola municipal em que leciona, em uma cidade com cerca de 44 mil habitantes no interior de São Paulo.
Para ela, o ensino remoto não se trata de videochamadas, lives e apostilas virtuais. A solução encontrada para que os alunos da rede municipal que não possuem acesso à internet acompanhem as matérias da escola durante a pandemia foi reunir planos de aula de cada disciplina e formar um caderno com blocos de atividades.
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Assim, os estudantes ou seus responsáveis buscam o material na escola, realizam a atividade em casa, devolvem no colégio e, enfim, os professores recebem e corrigem as atividades para acompanhar o desenvolvimento dos alunos.
Foi dessa maneira que 62% das escolas do Brasil disponibilizaram o material de suas aulas aos estudantes, segundo pesquisa sobre as atividades remotas utilizadas na Educação Básica durante a pandemia realizada pela Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED), em outubro.
“Como estamos tratando de um ensino público, é tudo muito limitado. Nós temos quantidade de folhas muito limitadas, qualidade de impressão muito limitada, não é uma impressão colorida, é uma impressão preto e branco”, relata Laura.
Desde que a pandemia forçou todas as fases da educação a recorrerem ao ensino remoto, a ausência de recursos para que os alunos tenham acesso a todo o conteúdo das aulas foi escancarada e tem dificultado o processo de ensino-aprendizagem.
Laura lembra que o único contato virtual com os alunos é feito por WhatsApp e, mesmo assim, encontra diversas dificuldades de comunicação com pais e alunos, como falta de interesse, internet, aparelho celular e de acesso à leitura e escrita das mensagens pelos responsáveis.
Essa falta de infraestrutura e conectividade dos estudantes foi apontada como um desafio para 79% dos professores que responderam a terceira etapa da pesquisa “Sentimento e percepção dos professores brasileiros nos diferentes estágios do Coronavírus no Brasil”, realizada pelo Instituto Península no final de agosto.
“Com a ajuda da tecnologia, a pandemia vem mostrar que a escola pode acontecer onde as pessoas estiverem e onde for possível existir o diálogo entre aprendentes e objeto do conhecimento. A tecnologia vem ajudar a descentralizar a escola. Mas ela, infelizmente, ainda não é acessível a todos“, afirma a diretora executiva do Instituto de Desenvolvimento da Educação (IDE), Cláudia Santa Rosa.
A necessidade de aulas remotas revelou o problema de exclusão digital de parte da população de muitos países ao redor do mundo. No Brasil, a pandemia apenas evidenciou o cenário desigual de acesso à educação e à ferramentas digitais já enfrentado por alunos e professores em condições normais.
[de equipamentos]”, explica Cláudia, que também é coordenadora pedagógica na Rede Estadual de Ensino do Rio Grande do Norte, onde atua há 30 anos.“Independente de pandemia, nós temos uma realidade em que o digital não foi democratizado e ainda estamos muito analógicos. Temos escolas pelo país que o laboratório de informática ainda não chegou, escolas com muitos laboratórios de informática obsoletos, escolas com máquinas quebradas há anos. Não existe uma política sistemática para democratizar esse acesso, toda escola ter o seu laboratório de informática, e nem temos políticas de manutenção, de recuperação
As principais dificuldades que o cenário de crise sanitária refletiu no trabalho de Laura foram a falta de embasamento e de apoio para lidar com a situação. “O professor sente essa sensação de impotência, de não conseguir fazer com que o aluno aprenda do jeito que ele gostaria, de não ter condições de oferecer o que ele acredita e o que ele sabe que seria o melhor para esse momento”, desabafa a professora.
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Tecnologias digitais em aulas também é desafio para professores
Outro fator de problemas apontado por quase metade dos educadores (49%) no levantamento do Instituto Península foi a falta de formação para lidar com os desafios do ensino remoto. Além disso, 46% relataram falta de conhecimento de ferramentas virtuais que pudessem agregar ao ensino remoto.
Caroline Lima é professora de redação em uma escola de Ensino Fundamental particular de Paulínia (SP) e dá aulas de inglês em uma escola de idiomas de Campinas (SP), além de ser corretora de redação em um cursinho pré-vestibular na região. As aulas remotas quebraram as expectativas para o seu primeiro ano de carreira como formada em Letras.
“Quando as escolas começaram a sinalizar que seria necessário pensar aulas remotas e um período de fechamento, fiquei me sentindo muito insegura e frustrada”, ela conta. “Por serem as primeiras experiências, eu estava a milhão pensando em como fazer o melhor possível com o que eu sabia, não reproduzir as coisas que eu acredito estarem ultrapassadas ou descontextualizadas em termos de educação.”
Com o isolamento social, cada uma das instituições em que leciona abriu diferentes possibilidades de adaptação das aulas.
“Uma das escolas estava mais preparada no sentido de ferramentas clássicas, Google Institucional, treinamentos do Google for Education, mas que ainda assim estavam sendo pensados e implementados para o uso presencial. Já outra escola tinha um foco no uso das tecnologias com um aspecto menos formal. Os treinamentos envolviam uso de ferramentas que fossem criar aulas mais lúdicas, interativas, que atendessem a uma espécie de gamificação do aprendizado para os alunos”, diz Caroline.
Mesmo já com alguma preparação, todo o esforço necessário para adaptar as aulas remotas às ferramentas virtuais demandou muito tempo, e a urgência fez com que as horas de ofício se estendessem muito além das horas trabalhadas presencialmente.
“O ritmo era insano. Gravar aula, montar exercício, reuniões e mais reuniões pensando em adaptação de prova, atividade em grupo, treinamento sobre as plataformas de ligação online”, ela relata. “Foi uma rotina extenuante que, agora, meses depois, está sendo melhor organizada.”
O cenário emergencial imposto pelo novo coronavírus também transformou a percepção dos professores sobre o uso da tecnologia, de acordo com o Instituto Península. Enquanto antes da pandemia 43% dos professores consideravam nada ou pouco importante, agora 94% dos educadores enxergam o uso da tecnologia como muito ou completamente importante no processo de aprendizagem.
“O professor, por não ter sido preparado e não ter sido imerso no meio digital ainda no seu processo formativo, não conseguiu levar ainda para a escola, com toda a carga, o uso dessa tecnologia a favor do processo de ensino-aprendizagem”, explica Cláudia Santa Rosa, diretora executiva do IDE.
“Com a pandemia ele passa a perceber a importância da tecnologia e essa convocação para o ensino híbrido. A pandemia traz esse movimento de repensar a escola, a relação de ensino-aprendizagem, a importância de potencializar os estudantes para acessarem informações de forma mais construtiva e mais eficiente. E o professor é estratégico. Ele é parte importante desse processo, porque continua a ser um grande orientador, um grande mediador desse processo todo”, Cláudia completa.
A formação e o incentivo ao uso da tecnologia em Licenciaturas
Além do treinamento nas escolas, a professora Caroline Lima conta que sua experiência acadêmica ajudou na fase de adaptação de suas aulas. Formada em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), seu campo de pesquisa em Linguagem Aplicada na universidade estudou o uso de mídias sociais, especificamente o YouTube, na escola, com o apoio da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
“Por isso, eu estava um pouco mais confortável com aliar as mídias digitais, por exemplo, como um objeto em sala de aula. Isso está ajudando a pensar atividades de discussão e produção de texto nesse período”, ela conta.
Em relação a outras universidades públicas, ela considera que a Unicamp aproxima os estudantes à tecnologia, mas afirma as disciplinas que tratavam o assunto ficavam muito no campo teórico e faltavam com a prática.
“Pensávamos sobre as implicações do uso de tecnologia, os impactos no ensino da linguagem, como os materiais didáticos pareciam lidar com gêneros textuais que não eram mais usuais para a geração de alunos que está na escola agora. Porém, imagino que se os usos e as ferramentas disponíveis para educação online tivessem sido discutidas durante a graduação eu poderia ter um uso mais proficiente delas”, conta a professora.
As diretrizes curriculares estipuladas pelo Ministério da Educação (MEC) para cursos de Licenciatura colocam o uso de tecnologias digitais durante a graduação nas faculdades como parte fundamental da formação de professores para que os recursos sejam aplicados de forma eficiente no processo de aprendizagem.
As licenciaturas na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) contam com a disciplina “Tecnologias Digitais na Formação de Professores” em suas grades. De acordo com Sônia Bonelli, coordenadora da graduação em Pedagogia da Escola de Humanidades da PUCRS, o tema já faz parte do currículo do curso desde 2007.
“Ela é trabalhada em uma relação teórico-prática. É preciso buscar um referencial que sustente a utilização das novas tecnologias como ferramentas na organização e sistematização do trabalho pedagógico, mas também é preciso instrumentalizar os alunos no uso dessas novas ferramentas e aplicativos para uso em sala de aula”, explica a coordenadora.
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Para ela, cada vez mais as licenciaturas vão contar com disciplinas assim, mas o desafio da formação de professores capacitados a utilizar a tecnologia em aulas não se resume apenas a um semestre de aulas. “É preciso um engajamento de todo o corpo docente trabalhando com propostas diferenciadas de ensino e aprendizagem”, afirma Sônia.
“Nós, professores do Ensino Superior, devemos perceber o uso das tecnologias como nossa aliada e também precisamos de formação. Quanto mais estudarmos, quanto mais nos aprofundarmos, mais veremos a necessidade de mudança”, completa a coordenadora da PUCRS.
Iniciativas de apoio de professores para professores
A pesquisa do Instituto Península ainda mostra que, durante a pandemia, 57% dos professores buscaram cursos de formação para utilizar ambientes e recursos virtuais de ensino e aprendizagem. Além disso, 53% dos docentes procuraram tutoriais e dicas existentes na internet para tentar se adaptar às ferramentas nos últimos meses.
Por isso, iniciativas de mentoria se popularizaram entre educadores que querem entender os recursos e aprender novas habilidades. Uma dessas iniciativas é o Papo de Profes, rede que se propõe a conectar e capacitar professores de Idiomas, nas áreas de metodologia e didática.
“Para preencher o gap entre o que esse professor não aprende na faculdade e é exigido dele na vida real, a gente criou o Papo de Profes”, explica a idealizadora Daniele Pechi, jornalista e professora de Idiomas formada em Letras com habilitação em Português e Alemão na Universidade de São Paulo (USP).
“Além da gente fazer isso, nós temos na nossa proposta construir uma comunidade de professores que se ajudam, que estão em contato e se apoiam o tempo todo”, completa Daniele.
O projeto possui cursos de apoio, materiais e conteúdos gratuitos disponibilizados no YouTube e Instagram, com dicas e sugestões para os educadores que lecionam idiomas. “Como agora estamos caminhando para um modelo híbrido de ensino, acho que cursos como esse são cada vez mais necessários, porque os professores ficam muito perdidos sem saber qual ferramenta priorizar e o que de fato eles precisam fazer”, conta a professora.
“O importante é entender que se você souber algumas dessas ferramentas e masterizar essas ferramentas já está ótimo. Sabendo algumas que são estratégicas, você consegue ter diversos tipos de atividades super interativas e colaborativas, que vão deixar o professor muito seguro para seguir com as aulas online.”
“Ele vai poder olhar novamente para o pedagógico, para prospectar mais alunos e para ter mais qualidade de vida, coisas que foram tiradas deles nos últimos meses”, conclui Daniele.
Outra iniciativa que dá apoio aos professores e que tem sido aproveitada no período da covid-19 é o YouTube Edu, feito em parceria do YouTube com a Fundação Lemann, projeto onde os educadores podem publicar videoaulas ou utilizar os conteúdos submetidos em suas aulas. O programa ofereceu curadoria para que educadores pudessem produzir o conteúdo audiovisual, como explica João Luís Machado, especialista em educação e tecnologia que atuou como curador do projeto.
“O YouTube Edu teve como propósito realizar a curadoria de vídeos educacionais a partir da avaliação por especialistas de diferentes áreas do conhecimento, com conhecimento dos segmentos do Ensino Básico, em especial Ensino Médio e Ensino Fundamental II, áreas em que temos a concentração da maior parte desses materiais em vídeo”, conta.
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